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Língua Franca

Língua Franca: uma ponte entre a música de Portugal e do Brasil

Recentemente, os rappers brasileiros Emicida e Rael reuniram-se com os portugueses Valete e Capicua para darem vida a uma ideia comum de aproximação musical e artística entre Portugal e o Brasil.

Lançado a 26 de Maio, Língua Franca é o nome de um projecto de enorme riqueza lírica, resultado de um trabalho de produção erguido sobre a visão de quatro artistas únicos que ligam duas pátrias irmãs, tendo como ponte nada mais nada menos que aquilo que fazem melhor: a música.

Com o selo da gravadora Sony Music (Portugal) e da empresa brasileira Laboratório Fantasma (com a qual Emicida e Rael mantêm um contrato de exclusividade), o álbum conta com a produção de Fred Ferreira, Kassin e Nave.

Para quem os nomes dos responsáveis por toda a “arquitetura” sonora e arranjos melódicos de Língua Franca possam não parecer assim tão familiares à primeira impressão, passa-se às apresentações.

Os Produtores

Fred Ferreira é músico e produtor nascido na capital e baterista de bandas como os Orelha Negra, 5-30 (grupo formado por Fred, Carlão e Regula), Francis Dale ou os luso-brasileiros Banda do Mar.

Tocou já ao lado de Buraka Som Sistema, Zé Pedro e Tim (Xutos & Pontapés), Dias de RaivaLúcia Moniz ou do próprio Sam the Kid (um senhor que dispensa apresentações no panorama do hip hop português e que, ainda hoje, é uma das referências mais presentes no percurso de inúmeros rappers que tentam a sua sorte na indústria).

Fred Ferreira, produtor, músico
Fred Ferreira

Alexandre Kamal Kassin é já um veterano no campo da música, tendo-se destacado no cenário independente carioca dos anos 90 com a banda Acabou La Tequila. Ele próprio um músico multifacetado, Kassin é também cantor, compositor e produtor musical com uma “bagagem” considerável, constando no seu extenso currículo de álbuns produzidos nomes como o de Vanessa da Mata, Adriana Calcanhotto e o grande Caetano Veloso. E isto para não falar dos álbuns que produziu com assinatura própria.

Alexandre Kassin
Kassin

Por fim, temos Nave, o mestre das batidas que já conta com, assinados por si em termos de produção, inúmeros hits produzidos para artistas como Emicida, Marcelo D2, Karol Conka e outros nomes do panorama brasileiro, sobretudo no que diz respeito ao hip hop.

Nave
Nave

Este projecto representa também um esforço conjunto das já mencionadas Sony Music PT e da Laboratório Fantasma, que para além de fazerem o álbum “acontecer” em termos de produção e arranjo musical, imediatamente deitaram mãos à obra para potenciarem a sua divulgação a um público maior.

No que respeita a concertos, aproxima-se a actuação no Palco EDP do festival Super Bock Super Rock, no dia 14 de Julho, dia esse que tem como cabeça de cartaz o rapper Future, além de outros trunfos como Pusha-T, Akua Naru, Slow J e a dupla Beatbombers, campeã mundial no scratch e formada pelo DJ Ride e Stereossauro.

Alinhamento do Álbum 

  1. Amigos
  2. (A)tensão!
  3. Génios Invisíveis
  4. AFROdite
  5. Egotrip
  6. A Chapa é Quente
  7. Modo de Voo
  8. Vivendo Com a Morte
  9. Ideal
  10. Ela

Os Artistas

EMICIDA

Considerado uma das revelações do hip hop brasileiro no panorama musical dos últimos anos, o nome artístico de Leando Roque de Oliveira, mais conhecido como Emicida, deriva de uma fusão entre as palavras “MC” (“Master of Ceremonies”) e “homicida”. Por somar vitória atrás de vitória com as rimas que lançava em battles de rua, os seus amigos diziam frequentemente que Leandro era um “assassino”, precisamente por “matar” os adversários com o poder das suas palavras, o que justifica o nome.

Posteriormente, contudo, o rapper atribuiu também uma conotação de sigla para o nome: E.M.I.C.I.D.A. (Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades Domino a Arte).

Emicida
Emicida

Porém, a aparição “maior” deste artista junto das massas foi concretizada aquando do lançamento do single Triunfo, trunfo que lhe permitiu afirmar-se no espectro dos meios de comunicação social, tendo o videoclip desta música atingido milhões de visualizações no Youtube.

Emicida lançou depois o seu primeiro projecto completo, no ano de 2009: uma mixtape de vinte e cinco faixas com o nome Pra quem já Mordeu um Cachorro por Comida, até que eu Cheguei Longe…, com o selo da Laboratório Fantasma.

Emicida foi também voz de Baiana, uma música leve e descomplexada que cantou ao lado de Caetano Veloso, indubitavelmente, um dos senhores da música brasileira (e internacional).

Na edição de 2011 do festival Rock in Rio, no Rio de Janeiro, Emicida subiu duas vezes ao palco: numa das quais actuou com a banda de reggae Cidade Negra e com uma das mais memoráveis e intemporais figuras do samba brasileiro, Martinho da Vila.

Emicida; Martinho da Vila
Emicida com Martinho da Vila

Ainda em 2011, Emicida fez parte do line-up da segunda edição do festival SWU, em Paulínia. O artista brasileiro abriu o primeiro dia do festival, que contou ainda com a presença de ícones como Snoop Dogg, Kanye West, Black Eyed Peas, entre outros.

No dia 15 de Abril de 2011, Emicida foi o primeiro rapper brasileiro a actuar no festival Coachella (Califórnia, EUA), um dos maiores e mais mediáticos festivais de música dos Estados Unidos.

VALETE

Keidje Torres Lima, ou Valete, nome com o qual se imortalizou na cena do hip hop português, nasceu na Damaia a 14 de Novembro de 1981 e deu início a uma participação activa no movimento no ano de 1997, ao constituir o Canal 115, lado a lado com Bónus e Adamastor.

Sociólogo de formação, este gigante do rap sempre patenteou a sua música por uma frontalidade cortante na abordagem de temas relacionados com a política, a desigualdade social, a descriminação e, no que diz respeito à música em si, a autenticidade da arte (ou falta dela) verificada no panorama actual.

Desde cedo, Valete transcendeu barreiras em termos artístico, fazendo jus ao papel de intervenção social do hip hop enquanto cultura.

Homem do ritmo e da poesia, Valete perseverou no panorama musical português – afirmando-se até (posteriormente), além fronteiras – precisamente porque faz das palavras o que quer: fazendo uso do seu talento para uma uma composição lírica com conteúdo, valor ideológico e com muito mais que se lhe diga, manuseando com reconhecível mestria a métrica dos seus versos e rimas; e, acima de tudo, passando a mensagem da melhor forma.

Quer concordemos ou não com o que diz, quer nos identifiquemos ou não com a experiência de vida de um artista que já viu e viveu muito, é inegável que a figura de Valete se faz valer pela honestidade dos valores e opiniões que transmite por via da música.

Por isso e por ter feito, ao longo de uma carreira já longa e solidificada, uma arte que em tudo é genuína e que, ainda hoje, causa impacto junto de todos aqueles que vibram com o hip hop. Mais do que um nome, Valete é uma referência.

Valete
Valete

Valete percorreu o país com o seu Canal 115 durante dois anos em que “cuspiram fogo” e portentosas rimas em palcos de Norte a Sul, erguendo o seu trono ao fazerem música “só por amor”.

Na sua discografia, os álbuns mais sonantes são Educação Visual e Serviço Público, que dificilmente passam despercebidos aos apreciadores do género musical em terras lusas. Contudo, em 2015, Valete lançou também uma mixtape intitulada Na Batida dos Outros, uma gema escondida misturada pela dupla Beatbombers e divulgada pela revista Blitz que, sem dúvida, merece uma audição.

Actualmente, os fãs mais fiéis aguardam ansiosamente o lançamento do álbum Homo Libero, prometido há já algum tempo pelo rapper.

Valete lançou ainda recentemente a música Rap Consciente, uma verdadeira “bomba” produzida por Baghira e misturada por Slow J, em que o rapper expõe sem papas na língua a sua opinião face ao panorama actual do hip hop em Portugal.

Serve, assim, de bandeja uma mão cheia de críticas aos artistas que fazem música para “vender” e não por amor genuíno ao que fazem.

RAEL

Israel Feliciano, mais conhecido pelo seu nome artístico Rael ou Rael da Rima, é um cantor, compositor e rapper brasileiro, cada vez mais reconhecido no panorama musical do país. Durante mais de uma década, integrou o grupo de rap Pentágono, com o qual gravou quatro discos.

Tendo anunciado em 2012 a sua saída oficial do grupo, Rael pretendia focar-se exclusivamente na sua carreira solo. Em 2016, porém, juntou-se ao grupo novamente – atualmente trabalham num próximo álbum.

Rael; fotografia de Rafael Kent
Rael

Em 2007, foi incluído no grupo de artistas que participou na primeira edição do tradicional Som Brasil, da Rede Globo, em homenagem a Vinicius de Moraes. Juntamente com artistas como MC Rashid, Criolo e Terra Preta, Rael reinterpretou êxitos do inesquecível e hábil cantor e compositor da Garota de Ipanema.

Foi no ano de 2010 que Rael lançou seu primeiro single a solo, intitulado Trabalhador. Pouco tempo depois, veio o seu primeiro disco, intitulado MP3 – Música Popular do 3.° Mundo, lançado pela editora Tratore.

Foi em 2013, que, na prática, retirou o “cognome” Da Rima, mantendo apenas Rael, lançando em março do mesmo ano o tão aguardado Ainda Bem Que Eu Segui As Batidas Do Meu Coração O álbum contou com o trabalho de produção da dupla norte-americana Beatnick & K-Salaam, que trabalha com a extraordinária Lauryn Hill e também assinaram Doozicabraba e a Revolução Silenciosa, de Emicida.

Rael; álbum; Ainda bem que eu segui as batidas do meu coração
Capa do álbum “Ainda bem que eu segui as batidas do meu coração”, de Rael

CAPICUA

Capicua é o nome artístico de Ana Matos Fernandes, nascida no Porto, uma rapper portuguesa que descobriu o hip hop na adolescência, primeiro na vertente subcultural do graffiti e street art e só posteriormente no campo da música.

Uma mulher nortenha de força, aos poucos e poucos, Capicua vai deixando o seu nome marcado no panorama musical português, sobretudo no que diz respeito ao hip hop, sendo uma mulher num meio, maioritariamente, de homens que se destacou junto do público com temas como Vayorken e Maria Capaz.

Capicua
Capicua

Ana Matos Fernandes completou a sua licenciatura em Sociologia no ISCTE e o doutoramento em Geografia Humana na emblemática cidade de Barcelona, porém, o que a chamava era a música. Em meados de 2012, a sua música alcançou um público mais amplo a nível nacional, o que finalmente permitiu que Capicua fizesse da música vida.

Desde aí, a sua carreira não parou de crescer, tendo já feito pelo caminho diversas colaborações com artistas portugueses de renome, entre os quais o veterano Sérgio Godinho, o icónico Sam the Kid e o campeão do scratch, DJ Ride.

Tendo a sua escrita um teor acentuadamente emotivo e politicamente altivo, e patenteando-se também pela espontaneidade, pela atitude irreverente e (como não poderia deixar de ser) pelo feminismo, a sua música e letras não deixaram o público indiferente.

No ano passado, lançou em parceria com Pedro Geraldes (guitarrista da banda Linda Martini) o projeto Mão Verde, um livro/disco de música repleta de história, valores e riqueza conceitual, dirigido aos mais pequenos, que visa passar uma forte mensagem de cariz ecológico com uma ávida orientação ambientalista, promovendo de uma forma simples e descomplexada a importância de preservar o ambiente e proteger o planeta em que vivemos.

Mão Verde; Capicua; Pedro Geraldes; Linda Martini
Capicua junta-se a Pedro Geraldes no projecto “Mão Verde”

Falando em Língua Franca

Língua Franca é, antes de mais, a celebração de um património comum, de uma língua enorme, com uma riqueza léxica infinita, uma dicção única e uma beleza muito própria: um tesouro cultural partilhado entre Portugal e o Brasil num projecto que prova que (citando Rui Veloso) “tanto mais é o que nos une que aquilo que nos separa”.

Valete, Capicua, Emicida e Rael falam-nos, antes de mais, numa língua honesta, autêntica…numa língua franca, que põe a nu as identidades de quatro rappers com backgrounds absolutamente díspares, enquanto artistas e enquanto seres humanos. E não o digo somente por fazerem a sua arte em português, mas acima de tudo por, a olhos vistos, colocarem tanto de si neste projecto partilhado numa harmonia única.

O ideal de Língua Franca, a par de várias outras faixas de um álbum que merece ser escutado, converge na perfeição em Ela: na faixa que encerra o alinhamento, cada um dos artistas exprime aquilo que a música representa para si e o efeito que teve, individualmente, na sua vida, em palavras de uma pureza e honestidade extraordinárias.

Por um lado, temos Capicua, uma “mulher de armas” irreverente, que não tremeu ao enveredar num mundo que tantos consideram essencialmente “masculino”. Uma “mulher de armas” que fala sem pudores e arrisca musicalmente, que veio do Porto para todo o país e não hesita em exprimir aquilo que pensa.

Ela é “viciada em música” e, de certa forma, traz uma energia feminina a este projecto que, como já foi dito pelo próprio Valete, por vezes “faz muita falta” no movimento.

Valete nunca deixa de trabalhar nem de se fazer valer pelas palavras e pelo conteúdo do que diz. Aqui, dá-nos alma e autenticidade, retratando a nu e cru o cenário do bairro social em que cresceu, onde tantos dos seus companheiros se perderam no crime, nas drogas e até mesmo na morte: um cenário onde a música funcionou como terapia e salvação de uma realidade da qual conseguiu escapar através da arte.

Do lado do Brasil, temos o olhar profundo de Emicida sobre a vivência nas favelas da periferia de São Paulo, onde viveu e cresceu, e sobre a acentuada desigualdade social que aí mostra a sua face mais negra, num ambiente de pobreza e acentuada criminalidade onde tantas vezes a força da circunstância torna árdua a tarefa de perseverar como um ser humano bom e respeitável. Foi num caminho repleto de obstáculos que Emicida entendeu o valor da música na sua vida e o quão longe poderia ir se investisse naquilo que mais amava fazer.

Por fim, temos a intervenção de Rael, que completa a faixa da maneira ideal. Com uma voz envolvente colocada em palavras agradáveis sobre o poder da música na vida de cada um, o rapper brasileiro consegue quase transportar-nos, trazendo para a música uma energia muito boa que harmoniza tudo o resto.

O beat é magnetizante, as rimas dizem muito e claramente foi conseguida uma produção musical funcional, onde as palavras fluem levemente do rap português para o rap brasileiro, numa harmonia, devo dizer, bela.

A contrastar com a “calma” desta faixa, temos o boom de A Chapa é Quente: uma música mais pesada, com uma batida forte, onde Emicida e Rael falam sem filtros da guerra das ruas, do “olho por olho, dente por dente” vivido em cenários de crime e conflito, da batalha constante que é a luta pelo respeito nos bairros onde manda o medo.

Numa atmosfera completamente diferente, temos Ideal, uma música em que se “respiram” boas vibrações, uma música que fala de liberdade, de não idealizar padrões de vida perfeitos e de simplesmente viver a simplicidade das coisas. Ideal é alegria pura e genuína, é o calor do Brasil e o bom clima de Portugal, uma música com sabor a “coco”, “banana” e “abacate”, uma canção fresca que nos transporta para o Verão e para o sol.

Língua Franca foi já alvo do elogio do próprio Caetano Veloso, que reconhece o valor do álbum e a qualidade da música que nele se ouve, louvando um projecto muito bom que promete aproximar a música portuguesa e a música brasileira. Como seria de esperar, a satisfação dos quatro artistas envolvidos ao ouvir estas palavras foi evidente. “Acima do Caetano só há Deus”, brinca Valete.

Caetano Veloso
Caetano Veloso já mostrou a sua admiração pelo projecto de Valete, Emicida, Capicua e Rael

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