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13 Reasons Why
Beth Dubber/Netflix

’13 Reasons Why’: “Entre o pensamento e o ato há uma pequena distância”

Esta peça aborda temáticas que incluem comportamento autolesivos e suicídio.
Se precisares de conversar liga para linha SOS Voz Amiga: 800 209 899, linha gratuita entre as 21h e as 00h.
Se estiveres em risco imediato, pede ajuda aos serviços de urgência, através do 112.

Preciso que pare. Preciso que tudo pare”, confessou Hannah. “As pessoas. A vida”, disse, quando tentou pedir ajuda ao orientador do seu liceu. Mas o pedido não foi ouvido. “Alguns de vocês preocuparam-se… mas nenhum de vocês se preocupou o suficiente. E eu também não”, lamentou. Ao gravar a 13.ª cassete da coleção, Hannah já estava decidida a pôr fim à vida. Apesar dos sinais, ninguém a auxiliou. Finalmente, desistiu: “Não há mais nada a dizer.

13 Reasons Why estreou no final de março mas o diálogo sobre a série continua. A produção original da Netflix tem sido recebida, na generalidade, com boas críticas da imprensa e é um sucesso de popularidade com o público. No entanto, as escolhas dos produtores têm sido repudiadas por várias organizações ligadas à saúde mental e existe preocupação dos estabelecimentos de ensino e dos pais dos jovens a quem a série apela.

Na Austrália, a fundação Headspace alertou para o risco de os jovens serem expostos à série baseada no livro de Jay Asher. A Nova Zelândia criou uma nova categoria de classificação etária para o programa, recomendando que os jovens assistam com acompanhamento de um adulto. A fonte das preocupações é a cena gráfica no último episódio da série: o momento em que Hannah morre.

A Organização Mundial de Saúde compilou uma lista de recomendações para orientar os profissionais dos media para a representação do suicídio. Nela, o organismo adverte para aquilo que não deve ser feito: não tornar pública a carta do suicídio, não dar a conhecer o método usado no ato, não oferecer causas simplistas e nunca atribuir culpas.

A escolha de representar um suicídio é sempre uma escolha que deve ser muito bem ponderada, referiu uma das voluntárias da associação SOS Voz Amiga, em entrevista ao Espalha-Factos. Extensa investigação aponta para o perigo de os retratos de atos suicidas no espaço mediático poderem ter um efeito contagiante nos públicos mais sensíveis. A associada explicou: “A representação do suicídio tanto pode ter um efeito protetor e de prevenção, como pode ter um efeito despoletador e conducente ao próprio suicídio.

A Lei da Televisão regula a atividade de televisão e a oferta de conteúdos audiovisuais a pedido. No artigo 27, a diretiva proíbe a emissão de programas “suscetíveis de prejudicar manifesta, séria e gravemente a livre formação da personalidade de crianças e adolescentes”. “O suicídio não pode ser um tabu mas vamos ser muito cuidadosos ao apresentá-lo”, indicaram as voluntárias. Os adolescentes são muito mais vulneráveis à forma como é representado.” E asseguraram:

“Há uma predisposição para confundir aquilo que é a realidade com a ficção.”

Alertaram para a natureza não-linear da programação da Netflix e como o binge-watching incentiva o isolamento dos jovens. “Não há um filtro editorial para aceder ao conteúdo”, comentaram. “O tipo de consumo da Netflix é potenciador de um consumo isolado.

Paralelamente, destacaram o papel essencial dos adultos no acompanhamento das crianças, e a sua obrigação de contextualização, relativização e mediação da ficção. “O acompanhamento parental é um mediador do risco daquilo que é observado”, mencionou uma das associadas.

“Ninguém comete suicídio porque sim.”

A voluntária notou alguns aspetos que 13 Reasons Why não considera e que formam lacunas importantes na representação do fenómeno do suicídio. A primeira falha está na falta de introdução da doença mental na equação. O consenso científico é de que 90% das pessoas que cometem suicídio sofrem de um distúrbio mental. Embora Hannah demonstre sinais de instabilidade psicoemocional, o espectador nunca é confrontado com a possibilidade de ela sofrer de depressão.

A prática do suicídio é um comportamento que tem de ser sempre contextualizado numa vulnerabilidade prévia, sublinhou. “Porque ninguém comete suicídio porque sim.

13 Reasons Why
Hannah admite sentir-se “perdida” e “vazia”, mas a série escolhe não falar sobre a saúde mental da personagem. [Foto: Beth Dubber/Netflix]

Numa edição especial de celebração do décimo aniversário do livro, Jay Asher explicou que a morte de Hannah não fora a sua ideia original para o final de 13 Reasons Why. No final que nunca chegou a ser, Hannah não consumaria o suicídio e seria salva no hospital. O autor revelou que tomou a decisão de mudar de direção por reconhecer a seriedade do tema e por querer que a história servisse de aviso.

No segmento especial Beyond the Reasons, que acompanha os episódios na Netflix, Brian Yorkey defendeu a escolha de mostrar a morte da protagonista. O criador da série afirmou: “quisemos que fosse doloroso de ver, porque quisemos que fosse claro que o suicídio não vale a pena.” Asher ecoou o sentimento dos produtores e acrescentou: “quiseram mostrar o quão horrível pode ser.

“Há um paradoxo entre as intenções e a série em si mesma.”

A linha SOS Voz Amiga atua diariamente na prevenção do suicídio e no auxílio daqueles que necessitam de apoio emocional. Por isso, as representantes da associação notaram que outro erro da série é não apresentar alternativas. Em Beyond the Reasons, Selena Gomez, que foi produtora executiva do programa, realçou: “Quisemos fazer algo que possa ajudar as pessoas, porque o suicídio jamais deve ser uma opção.” Embora as intenções sejam louváveis, 13 Reasons Why mostra o suicídio como a única opção.

Há um paradoxo entre aquilo que foi a intenção dos produtores e a série em si mesma”, consideraram as voluntárias. “Falar do suicídio como um fenómeno sem saída é fazê-lo de forma pouco rigorosa. “A série não evidencia aquilo que ela podia ter feito para não ter chegado ao ponto a que chegou, observaram. “Essa é que seria a mensagem importante. Existem saídas e recursos, mas não foram explorados.

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13 Reasons Why
Hannah pede ajuda ao orientador da escola, mas o adulto sugere que ela “siga em frente”. [Foto: Beth Dubber/Netflix]
A organização SAVE e a fundação JED, associações norte-americanas na área da prevenção do suicídio, criaram um documento com um conjunto de tópicos de conversa para fomentar o diálogo entre pais e filhos. No último ponto lê-se: “As cassetes de Hannah culpam outros pelo seu suicídio. O suicídio nunca é responsabilidade dos sobreviventes.

“O suicídio é um fim.”

Enquanto espectadores, o que sentimos é que eles foram mesmo os culpados por aquilo que lhe aconteceu”, admitiu uma das voluntárias. Face à representação de “um suicídio que é imputável ao comportamento de um conjunto de pessoas”, refutaram:  “A responsabilidade é de quem delibera o ato.”Ela aparece como uma personagem que, pós morte, se vem vingar de toda a gente. Isso é uma coisa que não acontece, porque o suicídio é um fim.

Na Europa, o suicídio é a principal causa de morte dos jovens entre os 15 e os 29 anos. Em 2015, mais de 220 mil jovens tiraram a própria vida em todo o mundo. A nível global, o suicídio surge em segundo lugar nas causas de morte dos jovens, ultrapassado apenas pelo número de óbitos provocados por acidentes rodoviários.

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É um fenómeno que é preocupante, porque é prevenível, acrescentou uma das voluntárias. Nos últimos anos, a linha SOS Voz Amiga tem assistido a um crescimento considerável no número de chamadas. A voluntária explicou que aquilo que distingue a Voz Amiga de uma linha de emergência, como o 112, é a disponibilidade “para criar uma relação” com quem pede ajuda.

Deram conta de uma insuficiente capacidade do Sistema Nacional de Saúde para responder aos pedidos de auxílio. Afirmaram existir um “aumento do sofrimento”, que é alimentado por um contexto de crise: em Portugal e na Europa.

Faria todo o sentido que esta linha funcionasse durante 24 horas, mas não temos recursos financeiros nem humanos”, lamentaram. Apesar de estar referenciada no Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, a associação não recebe qualquer apoio estatal e sobrevive graças às quotas dos associados e a doações de mecenas. 

Aviso: o vídeo em baixo mostra imagens de comportamentos autolesivos, violência sexual e suicídio.
Edição de: ItsATwinThing 

Em 13 Reasons Why, Hannah demonstra sintomas de uma doença mental e mostra sinais de ideação suicida a dois adultos da comunidade escolar. Primeiro, à professora de comunicação e, mais tarde, ao pedir apoio ao profissional de orientação no seu liceu. Ambas as personagens falham em reconhecer os avisos. A associação SOS Voz Amiga sublinhou a importância de “educar também os adultos.

As figuras de autoridade falham em reconhecer os sinais e falham em oferecer ajuda”, notaram. “Regra geral não é isso que acontece”, continuaram. “Há doenças mentais que não estão diagnosticadas, mas que têm sintomas. É importante que os professores saibam perceber esses sintomas.” E deixaram o aviso:

“É preciso estar especialmente atento aos pensamentos que os jovens enunciam.

Entre o pensamento e o ato há uma pequena distância.”

No especial Beyond the Reasons, Jay Asher considerou: “É um tema desconfortável, mas é um fenómeno que acontece, portanto temos de falar sobre ele.” E continuou: “Seria um perigo não falar. Há sempre lugar para a esperança.” Questionadas sobre a importância de nutrir um sentimento de esperança, as associadas da SOS Voz Amiga responderam ser “fundamental”.

Há um estigma associado à doença mental e um estigma maior ainda associado ao suicídio”, introduziram. “Não se pretende que não se fale sobre o suicídio. Pretende-se que se fale, mas utilizando um conjunto de regras éticas e deontológicas de uma forma construtiva.

A estratégia de prevenção da Direção Geral de Saúde inclui ações de sensibilização nas escolas, com foco particular nos grupos etários mais jovens. As voluntárias admitiram existir uma mudança gradual: “Há movimentos nesse sentido.

A conversa concluiu com a partilha do desejo de que o debate seja mais alargado. A associação SOS Voz Amiga aspira que se fale cada vez mais sobre o suicídio, quer que os agentes de autoridade estejam equipados para identificar os fatores de risco e espera que consigam encaminhar para as saídas. Salientaram que a depressão é tratável, que o risco é acompanhável e que “falar aproxima as pessoas.

A linha SOS Voz Amiga é um espaço de conversa confidencial e anónimo.
Funciona diariamente, entre as 16h e as 00h, através dos números 213 544 545, 912 802 669 e 963 524 660.
A linha verde funciona das 21h às 00h. Se precisares de ajuda, liga o 800 209 899.
Consulta também uma lista com outros contactos úteis.