Tardou mas os Depeche Mode estão de regresso. Os reis do synthpop britânico voltaram com o tão esperado 14.º álbum intitulado de Spirit. Estamos em 2017 e uma mão cheia de notícias polémicas políticas do outro lado do mundo chega a nossa casa a cada milissegundo e faz os nossos telemóveis, tablets e afins notificarem-nos de tal. Mas os Depeche Mode não vieram apenas aguçar o apetite da revolução – tal como já nos tinham mostrado no primeiro single de Spirit –, mas sim trazer um álbum de redenção.
Os britânicos de Basildon, com uma carreira de 37 anos, já não são propriamente sinónimo de inovação ou breakthrough no atual panorama musical, mas Spirit, mesmo não fugindo totalmente a essa regra, é um álbum sólido e provavelmente o disco mais indomável do grupo.
Pode-se pensar que este lançamento é apenas um pretexto para uma mega-tour dos Depeche Mode, mas este tipo de álbum é necessário para nos encorajar a seguir em frente, a pensar melhor sobre como vamos enfrentar os desafios da atualidade. A banda sentiu a urgência de pôr estas palavras e estas ideias cá fora o mais rápido possível, algo que já não acontecia há vários anos.
Going Backwards abre assim uma narrativa bastante Orwelliana que nos dá logo um cheirinho do que se vai tratar o último trabalho dos britânicos. “We are not there yet/ We have not evolved” é como começa a primeira faixa com um groove que relembra os primórdios da banda. É uma clara retrospetiva aos últimos meses, uma crítica dura ao estado de alienação em que vivemos, com todas as nossas tecnologias e uma mentalidade de homem das cavernas, uma antítese sempre presente.
Segue-se Where’s the Revolution, um single previamente lançado, que perpetua o sentimento de revolta, de opressão que paira sobre Spirit. É esta a faixa que resume perfeitamente em que é que os Depeche Mode queriam inovar e, apesar de não ser a primeira, músicas escritas com um propósito político são um campo ainda pouco explorado pela banda. Escrita de um modo sarcástico por Martin L. Gore, tal como Dave Gahan o admitiu, traça pormenorizadamente um conjunto de eventos que tem feito a sociedade sofrer e aponta o dedo ao porquê de ainda não termos feito nada contra tal.
Não só de política vive Spirit, e a faixa You Move está cá para nos provar exatamente isso: regressou a sensualidade tão própria dos Depeche Mode que apaixonou os primeiros fãs, nos idos anos 80, com hits como Personal Jesus. Esta música podia ter sido facilmente retirada de um clássico Songs of Faith and Devotion com a voz de Gahan a transpirar a típica animalidade sensual.
Spirit mostra-se uma narrativa muito compacta no que toca à lírica de Martin L. Gore com uma primeira parte muito arrebatadora criticando a sociedade, hiperbolicamente inspirada no 1984 de George Orwell. Mas não será verdade que praticamente todos se inspiram nesta obra para escrever sobre a atualidade?
É em Cover Me que os Depeche Mode começam a fechar este ciclo de rebelião onde tomam o papel de principais desertores e provocadores da revolução. Uma faixa, ao que me parece, intrinsecamente inspirada em Bowie, o homem-estrela que a banda admira imensamente.
Gahan descreve-a como sendo um alguém que busca um novo planeta de forma a tentar escapar toda a desordem que a Terra tem para oferecer, mas que, lentamente, se vai apercebendo que tudo lá é igual. Esta é a metáfora com a qual metade da população mundial se identifica neste momento. É um círculo vicioso de nos tentarmos desligar de todo o buzz que nos cerca, mas também quando nos vamos apercebendo de que ignorar não é solução: se queremos mudança e temos liberdade para tal, há que haver revolta.
A pacífica Eternal vem repor um sentimento de calma e segurança depois de toda uma primeira parte do álbum inquietante e soul-crushing. É um interlúdio cantado por Gore que nos mostra a luz depois de caminharmos durante tanto tempo na penumbra, mas um tanto sarcástica devido ao instrumental bastante dark.
Poison Heart volta com um blues-eletrónico arrebatador que vai buscar muita inspiração ao Delta Machine, o álbum anterior da banda, e também ao trabalho a solo de Gahan. O que a torna ainda mais especial é o facto de ter sido composta por Dave e que, segundo o seu companheiro de banda Martin, é a melhor música que ele já compôs.
Não se argumentaria propriamente que é uma breakup song, mas distancia-se bastante da primeira parte do álbum, onde a banda começa a fazer uma ponte entre os conflitos da sociedade e os conflitos pessoais de Martin e Dave. A voz de Gahan está mais crua que nunca, irritada, sem quaisquer artifícios para cobrir a dor imputada nas palavras que saem da sua boca.
So Much Love tem um sabor pop agridoce dos anos 80, podia estar incluída num dos primeiros trabalhos deles e, da forma mais subtil possível, retorna ao tema do amor, do típico “estar apaixonado” mas numa maneira muito à la Depeche Mode.
Poorman é a prova anti-capitalista que os britânicos nos quiseram dar a saborear. Com um sarcasmo refinado e uma pergunta subjacente ao sistema: “when will it trickle down?”. No More (This is the Last Time) traz-nos mais uma rendição lírica do vocalista e um synth poderoso que pinta o nu da voz de Dave. Fail é o grand finale de Spirit. Encerra o álbum da maneira mais cinemática e magistral possível com a voz angelical de Martin e a partilha intensa de interrogações retóricas sobre o atual estado do mundo. E nós, como muito ou pouco humanos que somos, perdemos o nosso “espírito”.
Apesar de, há uns dias, Richard Spencer, líder do partido neo-nazi americano, ter proclamado os Depeche Mode como a banda oficial da “alt-right”, Spirit responde com todas as letras a essa acusação e mostra que estes cinquentões privilegiados também se levantam das suas “king-sized beds” de manhã para escrever esta obra de arte reacionária.
A máquina está bem oleada e estes britânicos reinventam-se novamente. Tal como Dave Gahan canta no abrir do álbum… “we are not there yet” e eles não vão mesmo parar por aqui. Os Depeche Mode regressam a Portugal no dia 8 de julho para um concerto no Passeio Marítimo de Algés, no NOS Alive.