Tradicionalmente divisórios, os Oscars levam-nos a questionar o porquê de terem premiado certo artista ou filme, em detrimento de outro. Mas não só. Com o passar dos anos e o adensar do clima politizado da cerimónia, surge outra questão: o que simboliza, na verdade, um Oscar?
Se for apenas premiar a arte pela arte – se é que isso é possível -, então porquê os monólogos iniciais políticos? Os discursos de aceitação humanistas? As preocupação pela diversidade étnica?
Na 89.ª Cerimónia de Entrega dos Oscars da Academia realizada no passado dia 26 de fevereiro e com o intuito de homenagear os melhores filmes lançados durante 2016, o ator Casey Affleck foi premiado com o prémio de Melhor Ator pelo papel que desempenhou em Manchester By the Sea. As controvérsias que surgiram por esta vitória não foram direcionadas à sua atuação em si, mas sim ao facto de Affleck ter previamente sido acusado de assédio sexual.
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As acusações referiam-se a ações praticada pelo ator durante a produção de I’m Still Here (2010) e foram feitas pela produtora Amanda White e pela diretora de fotografia Magdalena Gorka. O caso acabou por ser resolvido fora do tribunal, mas voltou a receber atenção após Casey ter sido nomeado pela Academia.
Este nem é o único caso em que um Oscar foi dado a alguém com um historial controverso. O caso mais famoso é o de Roman Polanski (A Semente do Diabo), que não entra nos Estados Unidos da América há cerca de quatro décadas por ter sido acusado de violar uma criança de 13 anos durante a produção de Chinatown (1974), um crime que ele próprio acabou por admitir ter cometido. Apesar de este caso o estar a impedir de entrar no país, tal não o tem impedido de fazer filmes. De facto, acabou mesmo por ganhar o Oscar de Melhor Realizador em O Pianista (2002).
Os membros da audiência que presenciaram o momento aplaudiram, e poucos se pareceram importar com o facto de estarem a entregar um prémio de tal calibre a um criminoso acusado de pedofilia. Meryl Streep até se levantou para o aplaudir, o que mais recentemente a fez ser criticada pelo seu discurso político durante a entrega dos Globos de Ouro de 2017.
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Já na era de ouro de Hollywood, escândalos não eram acontecimentos pouco comuns. Rex Harrison (Cleópatra e Minha Linda Lady) foi um ator que teve um caso extraconjugal com a jovem atriz Carole Landis, que mais tarde viria a suicidar-se por descobrir que Harrison não se queria divorciar da mulher com quem estava casado. Após encontrar o seu corpo, o ator esperou várias horas até chamar a polícia e ajuda médica. Esta controvérsia teve um efeito temporário na sua carreira, mas não o impediu de ganhar um Oscar em 1964 e de receber a distinção de Cavaleiro Celibatário por parte da Rainha de Inglaterra em 1989.
Mel Gibson, outra figura controversa conhecida da indústria do cinema norte-americano, também voltou à luz da ribalta com o lançamento de O Herói de Hacksaw Ridge. Apesar de este filme ter sido bem recebido, Gibson já mostrou repetidamente ser um indivíduo anti-semítico e sexista, com múltiplas provas que evidenciam o seu comportamento abusivo na vida pessoal. Outro caso igualmente famoso é o de Woody Allen, que ao longo dos anos tem sido acusado de ter violado a filha Dylan Farrow.
A história da indústria do cinema está repleta de eventos semelhantes, nos quais artistas são envolvidos em escândalos que não chegam para acabar com as suas carreiras. Devido a grande parte destas estrelas serem pessoas de influência, muitos acabam mesmo por escapar de acusações de crimes que poderiam destruir a vida profissional (e mesmo pessoal) de uma pessoa comum.
Geralmente, considera-se que a arte deve ser separada dos artistas. Afinal, um prémio que avalia a qualidade de uma determinada forma de arte não deve fazer julgamentos de valor acerca da vida privada de quem os recebe…certo? O problema desta ideia é que ela nem sempre é aplicada. Vários artistas foram desprezados de prémios que à partida eram merecidos devido a escândalos deste género. Veja-se o caso mais recente de Nate Parker cujo O Nascer de Uma Nação ganhou o Prémio do Júri no Festival de Sundance de 2016 e foi visto no início do mesmo ano como um potencial candidato aos Oscars… até que um julgamento no qual Parker foi acusado de violação voltar a ser noticiado. De repente, o ator e realizador passou de “nova grande revelação” para mais um caso de controvérsia.
Mas o que separa alguém como Casey Affleck de Nate Parker? Claro que um caso de violação ficará muito pior visto do que um caso de assédio, mas algo que parece ser central para Casey sobreviver ao escândalo são as suas conexões com pessoas influentes. Para além de ser irmão de Ben Affleck, também é amigo de longa data de Matt Damon.
Também Mel Gibson e Woody Allen têm fortes ligações com outras figuras de Hollywood, bem como múltiplos sucessos críticos e financeiros. Isto torna-os mais valiosos para a indústria, que acaba por os apoiar. Parker não tinha muitas conexões e a popularidade de Nascer de Uma Nação ainda estava a crescer. A controvérsia em que se encontrou teve assim, contrariamente aos casos anteriores, um impacto duradouro na sua carreira.
Para além de melhorar a vida profissional dos premiados, os Oscars também acabam por ter uma carga política e social associada. A arte é um reflexo do próprio artista e, sendo assim, pode dizer-se que a influência dos Oscars não deve ser levada com apatia. Quando uma estrela os recebe, independentemente dos crimes que tenha cometido, está a ter a sua carreira congratulada e a garantir maior poder e influência sobre os seus próximos projetos.
Apesar disto, se a Academia decidir optar por ter em conta as questões morais dos seus prémios, até que ponto é que o deverá fazer? Será que deve agir como um tribunal judiciário, mesmo sem saber todos os factos? Casos como o de Casey Affleck já foram resolvidos dentro da lei. O elevado número de membros que compõem a Academia podem ter em jogo diferentes critérios de avaliação. Uns poderão agir sob a ideia de que a arte e o artista devem ser avaliados de forma diferente, enquanto outros podem não ir ao encontro desta ideia. Independentemente da escolha que esta entidade seguir, haverão sempre críticas a considerar que o oposto devia ter acontecido.
Enquanto avaliador de qualidade artística, a Academia deveria então entregar o prémio ao artista que foi mais merecedor. Esta não pode ser criticada por ignorar crimes dos quais não é a sua função avaliar. Se estrelas do cinema ficam impunes de crimes, então quem deve lidar com a situação é a lei, e se esta não lida com eles da maneira que deve, então é ela mesma que deve ser criticada. Mas isto também não deve ser uma desculpa para fãs destes atores e realizadores poderem ignorar os crimes que eles cometeram. Afinal, algumas das suas obras não tentam explorar o lado mais negro do ser humano?
Devemos assim voltar à questão inicial: O que simboliza um Oscar? Neste momento, nem a própria Academia parece saber. Uns membros parecem operar sob a lei de que a arte deve ser separada do artista, mas ao mesmo tempo, parecem deixar-se influenciar por determinadas controvérsias e deixar os apresentadores moralizar, ou até falar de política.
Para que esta questão seja respondida será necessário que os próprios representantes da Academia ponderem e sejam honestos acerca do que querem que a sua entrega de prémios represente.