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Streaming – O Caminho Minado do Cinema

Espectador ou actor, realizador ou crítico, o que nos fez um dia começar a gostar de cinema?

Talvez tenha sido algo no conjunto dos elementos que o constituem, na indescritível relação entre actor, argumento, cenário, luminosidade, música, câmara, espectador – a mise-en-scéne – que não passa do termo inventado para permitir nomear o indissociável conjunto de elementos que constitui uma cena. Mas será que a nossa relação com um filme é apenas influenciada pelo conteúdo da bobine?

A sala de cinema serve-nos como uma aproximação, uma tentativa de criar uma relação perfeita entre um filme e um espectador, e é uma tentativa condenada ao fracasso. Há muita coisa que se interpõe entre um espectador e um filme, a começar por ele próprio e pela sua disposição, quer geral quer relativamente ao filme, e incluindo tudo o que se passa à volta do espectador. Problemas de som, telas pequenas, até o intervalo.

Tudo isto, numa dose moderada, faz parte do cinema. Integra-se dentro daquilo de que é necessário abdicar para que o cinema seja o que é – uma arte revolucionária que se tornou popular porque chegou às pessoas, porque se construiu precisamente com o propósito de ser reprodutível. Todavia, se o cinema soube abdicar da pureza absoluta da arte para chegar até nós, a nós cabia e cabe, qual contrato implícito assumido por ambos, o acto de ver o cinema numa sala desenhada para tal, num ambiente onde o cinema possa ser prejudicado ao mínimo.

E assim o cinema foi, durante décadas, pensado, produzido e realizado com o fim de ser exibido numa sala de cinema. Do domínio das produtoras até ao domínio das distribuidoras, foi muitas vezes dominado pelo lucro que advinha da sua popularidade, mas não obstante todo o controlo e toda a interferência imposta pela indústria, a nossa relação com o filme não foi significativamente alterada.

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Hoje, contudo, após a chegada das sucessivas gerações de ecrãs, bem como a presença massiva de computadores em casa das pessoas, a partilha de ficheiros e restantes formas de pirataria tornaram-se numa forma de aceder a toda a produção cinematográfica de uma forma fácil. Mais tarde, o aparecimento e a proliferação de plataformas de streaming, que não são mais do que novas distribuidoras que reinventaram maneiras de fazer dinheiro com uma quase total ausência de custos, vieram legalizar e facilitar a distribuição de filmes para as plataformas caseiras.

É manifestamente impossível analisar objectivamente o impacto na relação entre o espectador e o cinema que as novas plataformas promovem, principalmente porque nesta nova forma de distribuição, o realizador, o produtor e até o distribuidor, têm próximo de nenhum controlo relativamente à forma como o filme é reproduzido. E embora a existência de um tal controlo nos possa pareça estranho, devido à própria natureza do cinema e das plataformas que usamos para o ver fora da sala de cinema, devemos a esta arte, se a respeitamos, uma reflexão sobre o impacto que ver um filme em condições altamente precárias tem na nossa apreciação de uma obra.

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Muitas vezes, as condições em que vemos o cinema tornam impossível qualquer sentimento de imersão ou apreciação razoável de todos os aspectos do filme. Começando pela qualidade da imagem, muitas vezes comprometida, até às pausas na transmissão, passando pela distorção ou má qualidade do som, e terminando nas quase escandalosas interferências que as distribuidoras impõem com o propósito de standartizar as obras, sem informarem ou pedirem autorização para tal aos realizadores e sem sequer informarem os espectadores. Refiro-me por exemplo às standartizações de formato que prejudicam enormemente realizadores e obras que usam a perspectiva ou o formato como formas de comunicar com o público, refiro-me à absoluta destruição dos filmes feitos com CinemaScope, e refiro-me à alteração das relações do aspecto usadas por realizadores como Xavier Dolan e Wes Anderson, para referir apenas dois dos mais conhecidos e contemporâneos.

E se, por um lado, se pode argumentar que a muito criticada pirataria deu a muitos jovens cinéfilos o acesso a quase todo o conteúdo da história do cinema, que por razões financeiras ou de acessibilidade se encontraria a eles de outra forma vedado, as formas de distribuição em streaming retiram a este argumento parte da sua validade, mantendo todos os defeitos e prejuízos para o cinema que advêm da banalização da sua apresentação, e tudo isto enquanto a indústria de distribuição que menos respeita o conteúdo das obras que distribui tem lucros imensos.

Posto isto, se é infrutífero lutar contra a tecnologia e todas as suas consequências de forma absoluta, é na mesma medida importante, hoje, lutar contra a destruição das obras e da arte que gostamos, tanto pela rejeição das distribuidoras que as desrespeitam, como pelo singular acto de ir ao cinema, tanto quanto nos seja possível. Porque é sempre na sala escura que percebemos quais são os filmes das nossas vidas, e é lá que verdadeiramente um dia aprendemos a gostar de cinema.