O dia 3 de março vai ficar na história da Companhia Mascarenhas-Martins como a sua estreia em palco. Toda a Gente e Ninguém é a peça inaugural da primeira companhia de teatro profissional no Montijo. Um texto de Gil Vicente foi o ponto de partida e a atualidade o meio para fazer refletir o quotidiano de todos nós.
A Companhia Mascarenhas-Martins tem o apelido de Maria e Levi. Os dois conheceram-se na Escola Superior de Teatro e Cinema, quando ela estudava Teatro e ele Cinema. Tudo começou com uma oficina de criação em que Maria participava no seu último ano. Havia filmagens que não estavam a correr nada bem. Felizmente, apareceu Levi de casaco de cabedal e num carro amarelo para salvar a situação, como ela conta. Tudo o que precisavam era de alguém que organizasse o projeto e Levi é bom nisso.
A partir daí começaram uma conversa que se estende aos dias de hoje na sua recém-nascida companhia. O primeiro espetáculo está aí. Toda a Gente e Ninguém leva a palco uma companhia que tem dois apelidos, mas que é feita por muita gente.
De um espetáculo cancelado surge uma companhia
O dia da estreia está a chegar e já está tudo pronto no Cinema-Teatro Joaquim de Almeida (CTJA) no Montijo. No palco já está o cenário com várias estruturas metálicas que, entre quadros e uma semicírculo que se desconstrói, nos sugere identificação. De lados opostos, entram dois atores em palco, Maria Mascarenhas e João Jacinto. A ver tudo na régie está Levi Martins, o encenador, juntamente com André Reis, responsável pela música, e Adelino Lourenço, o responsável pela luz e o criador daquele cenário.

O ensaio já acabou por hoje, agora começam a juntar-se na sala todos os que contribuíram de algum modo para a concretização da peça. Esta casa não é estranha para eles. Aliás, pode quase dizer-se que a história da companhia começou ali. De um espetáculo cancelado, houve a oportunidade de fazer algo novo.
Levi estagiava no teatro e Adelino e André trabalhavam ali. Maria entrou na peça que estreou no Dia Mundial do Teatro em 2014. Se Levi e Maria já pensavam em montar uma estrutura, André e Adelino deram força à ideia. “Cada um tem as suas valências e portanto foi o que aconteceu, começámos a trabalhar juntos. Depois decidimos oficializar isso para ter trabalho regular e tentar dar início a um projeto”, conta Levi.
Uma nova companhia, que se torna a primeira no Montijo
Nascidos em Lisboa, Maria e Levi vivem atualmente no Montijo. Habituados já a trabalhar no local, seja Maria em formação de teatro ou Levi que estagiou no CTJA, vão ser os fundadores da primeira companhia de teatro profissional na cidade. Há coletividades, mas falta pensar em desenvolver algo de forma contínua, como nos explica Levi. “Não existe uma regularidade de criação. Há projetos pontuais, há pessoas que se mexem, mas aquela ideia de criar uma companhia, como houve em muitas outras cidades, como em Setúbal o TAS (Teatro Animação de Setúbal), a Companhia de Teatro de Almada ou o Bando, quando foi para Palmela fixar-se lá”.
“No fundo há aqui um eixo fundamental sobre o qual nos debruçámos desde que nos conhecemos, que é pensar a relação com o espetador” – Levi Martins
Sabem que vai ser difícil dar os primeiros passos num espaço que não está habituado a estas andanças, mas querem dialogar com a comunidade. “No fundo há aqui um eixo fundamental sobre o qual nos debruçámos desde que nos conhecemos, que é pensar a relação com o espetador. Não no sentido de perceber o que é que as pessoas querem, porque isso seria pretensioso e não temos a pretensão de saber, no entanto, queríamos criar uma relação com o público, especialmente centrado nesta cidade, que fosse uma espécie de diálogo a vários níveis: a nível artístico e estético, mas também a nível intelectual”, refere Levi sobre a direção da companhia.

Os dois auto-intitulam-se de “estrangeiros” que invadiram a cidade e pretendem trazer peças que confrontem o público com a sua própria realidade. Neste espetáculo há o início de um dia difícil, há a situação de alguém que atravessa a estrada, e há sobretudo a repetição da banalidade.
“Não é chegar aqui e impor uma ideia qualquer” – Maria Mascarenhas
Há um efeito de estranhamento brechtiano na peça, que serve para mostrar que não querem mandar no que se vê, mas sim ter uma ligação com o público. “Não é chegar aqui e impor uma ideia qualquer”, acrescenta Maria.
A sua intenção é criar no fundo dois eixos de atuação. Um que guie a sua vontade de criar e apresentar projetos, e um outro em que se crie uma ligação com as coletividades do concelho e com as pessoas de lá. No fundo, João Jacinto, o companheiro de Maria em palco, encontrou a companhia por estas duas frentes.
“Eu sou como eles”, conta-nos apontando para todas as pessoas que estão na sala. “Eu estava cá e os estrangeiros vieram e era um bocado inevitável”, brinca João e o riso total surge na sala.
Natural do Montijo, João assistiu a uma apresentação da sua tia, aluna de Maria e conheceu os dois no final. Levi e Maria também o viram numa leitura encenada no Festival de Almada. Maria relembra que na altura até disseram: “Ah, o miúdo até se safa”.

Hoje interpreta três das seis personagens de Toda a Gente e Ninguém e para além da experiência positiva que afirma estar a viver, destaca o seu orgulho de ver algo novo a crescer na sua cidade. “O Montijo para mim a nível cultural era um caso perdido. Nunca me passou pela cabeça que isto pudesse acontecer.”
Uma peça de três anos e a sede na casa onde moram
Oficialmente criada a janeiro de 2015 e com a apresentação janeiro de 2016, o início de março é a concretização de uma peça que foi pensada há três anos. A partir daí foi um tempo de edição e reflexão. “É uma espécie de texto que foi escrito às quatro da manhã. Isto já foi há três anos… Nunca deixou de ter aquele ponto de vista, mas já foi muitas coisas”, revela Maria.
Tanto tempo materializado em 60 minutos no palco, que Levi acrescenta que podia ter sido seis meses úteis de trabalho. “São três anos porque não podemos estar seis meses dedicados a este texto. Isso é um aspeto muito importante, não se dá tempo à criação”, acrescenta. Tempo esse que começou na mesa da sala da casa de ambos. Até a música que acompanha a peça começou na cozinha, depois de André ter assistido a ensaios de leitura.
“A nossa sala é grande q.b.” – Maria Mascarenhas
Os últimos meses foram de ensaios, onde “a sede é a casa deles”, como refere o ator João Jacinto. Precisavam de espaço, quer para as estruturas do cenário, como para o espaço coreográfico. “A nossa sala é grande q.b.”, refere Maria.

De um espaço concedido pela Câmara Municipal do Montijo, foram para Os Unidos, onde foi possível pintar o cenário e concretizar a peça. “É claro que isto sem dinheiro, sem condições, cria uma tensão muito grande e implica uma adaptação a tudo”, esclarece-nos Levi. Ter esse espaço tornava tudo mais fácil e há perspectivas que isso possa acontecer.
O maior apoio financeiro foi o cachê do Adelino
Se hoje Toda a Gente e Ninguém vai acontecer, um dos grandes apoios financeiros foi o cachê de Adelino Lourenço num espetáculo anterior. “Nós fizemos um espetáculo, que teve um orçamento, e o Adelino abdicou do cachê dele porque disse que aquele dinheiro podia ser aplicado em cenários e figurinos num espetáculo a seguir. Então o dinheiro está ali!”, revela Maria a olhar para o palco. A comandar as operações na régie, Adelino diz-nos que valeu a pena e está confiante com o futuro. “Como nunca foi feito e é algo que sugere alguma mudança custa um bocado a engrenar. Mas acho que com o tempo vamos conseguir alguma coisa.”
Ninguém do grupo consegue viver ainda a tempo inteiro da companhia. Há a consciência que estão a iniciar um projeto e que este espetáculo vai servir para mostrar trabalho. Com a bilheteira a reverter a seu favor, têm ainda um objetivo: fazer digressão com a peça.
Porquê ir ver este espetáculo?
Toda a Gente e Ninguém foi inspirado no Auto da Lusitânia de Gil Vicente. Sem seguir o texto do dramaturgo, retiraram o conceito da guerra de opostos contida na peça do século XVI para falar da sociedade de hoje. “Que relação é que esse texto tem com o país, com a sociedade hoje? Nós pensamos, então porque não tentar fazer isto de forma direta? Uma coisa que também sempre me inquietou foi: o Gil Vicente escrevia peças para o seu tempo. Shakespeare escrevia peças para o seu tempo. Não estou a colocar-nos nesse patamar, mas toda a gente que fez teatro em certas épocas, que teve muito impacto, o Brecht também ou o Müller, todos tentaram escrever e interferir diretamente no tempo, mesmo que fossem buscar temas de outros tempos”, argumenta Levi.

Num primeiro espetáculo, numa companhia nova há muito a descobrir, nomeadamente espetadores. “Eu gostava que as pessoas viessem, nem que seja só por curiosidade. Nunca aconteceu nada como isto no Montijo, está a acontecer vão lá ver”, deseja Maria. Já Levi faz uma proposta: “A ideia é que fiquemos todos a olhar para a realidade, ou seja, um convite a tirarmos em conjunto essas camadas de ilusão que muitas vezes nos impedem de ver as coisas como elas são.”
“Se existir essa vitalidade desse bando que se junta aqui, muito espontaneamente, eu acho que há todos os motivos para também as pessoas se interessarem” – Levi Martins
Para um futuro próximo, há já uma peça com uma poetisa da terra, Goodbye Maria Albertina, numa linha totalmente diferente do espetáculo presente. “Se existir essa vitalidade desse bando que se junta aqui, muito espontaneamente, eu acho que há todos os motivos para também as pessoas se interessarem, virem discutir connosco e conversar”, afirma Levi dirigindo-se aos seus colegas.
Estas são as pretensões do estrangeiro que quer criar ligações com as pessoas da terra. Como uma das últimas frases do texto: “Afinal sempre chegamos ao sítio onde nos esperam.” Com os atores a olhar para o cenário, com a régie a olhar o palco e a intenção que o público o faça, é assim que a Companhia Mascarenhas-Martins quer seguir em frente.

Onde podes ver
Podes assistir à peça Toda a Gente e Ninguém de 3 a 5 de março de 2016, no Cinema-Teatro Joaquim d’Almeida, Montijo. O espetáculo é para maiores de 12 anos. Os bilhetes têm um custo de 6€, sendo que os grupos com 10 ou mais pessoas, estudantes, profissionais do espetáculos e quem tiver o cartão de amigo CTJA paga 4€.