O Espalha-Factos terminou. Sabe mais aqui.
O Rei Vai Nu
Foto: Mariana Godet

‘O Rei Vai Nu’: Há uma corte de saltimbancos no Teatroesfera


O conto de Hans Christian Andersen, O Rei Vai Nu, saltou do livro para o palco do Teatroesfera com um empurrão de Fernando Gomes, responsável pela adaptação da história dinamarquesa para uma peça de teatro musical. Desde setembro do último ano, o Rei D. Rodrigo – de cognome “O Vaidoso” – tem desfilado nu no palco do Teatroesfera.

No passado dia 20 de fevereiro, o Espalha-Factos esteve lá e conversou com os atores que dão voz, rosto e vida à adaptação de Fernando Gomes, que é também responsável pela música e encenação da peça.

Perto da hora de início da peça, os atores recebem o público e conversam com quem se vai sentando. É aí que começa a magia, nos sorrisos simpáticos e acolhedores que vão sendo trocados mesmo antes da peça começar. Dificilmente o público não se sente instantaneamente bem recebido e mais próximo dos rostos que tem visto nos cartazes por aí afixados. Cria-se uma empatia inevitável que torna o ambiente descontraído e confortável. As luzes baixam, a peça começa.

Ilustração do conto dinamarquês "Kejserens nye Klæder" (O Rei Vai Nu).
Ilustração do conto dinamarquês “Kejserens nye Klæder” (O Rei Vai Nu).

A História d’O Rei Vai Nu

Do dinamarquês Hans Christian Andersen, o conto foi originalmente publicado em 1837 e desde aí tem feito parte das histórias infantis que se nem todo o comum mortal conhece, já ouviu pelo menos falar. Desde o dia 19 de setembro podemos descobrir, sentados na plateia do Teatroesfera, como o Rei D. Rodrigo – de seu cognome “O Vaidoso” – é enganado por dois falsos alfaiates italianos que lhe fazem uma proposta irrecusável. A peça gira à volta do tecido mágico que só é visível para os inteligentes. Todos falam sobre ele mas a verdade é que ninguém o vê.

Do Centro Cultural da Malaposta para o Teatroesfera

Do Malaposta para o Teatroesfera, o elenco instalou-se na sua nova casa em setembro de 2015. O núcleo duro desta companhia de atores que dá vida às peças musicais infantis adaptadas por Fernando Gomes surgiu em 2005. Com algumas alterações ao elenco, Luis Pacheco, Ana Landum e Tiago Ortis receberam David Granada há três anos e Joana Campelo quando se mudaram para o Teatroesfera.

Com o encerramento do Centro Cultural da Malaposta, a companhia viu-se sem palco e sem auditório para sentar o enorme público que já os seguia. Em conversa com o Espalha-Factos, David explicou: “a Malaposta foi à falência por muito má gestão e de repente nós ficámos sem sítio para continuar o nosso trabalho e tínhamos imenso público. Ainda nos propuseram ficar na Malaposta mas íamos receber a três meses e ninguém estava na condição de aceitar isso, então andámos à procura de pessoas que quisessem ficar com o nosso espectáculo, à procura de teatros e surgiu a possibilidade de virmos para a Teatroesfera”. Assim, a nova morada desta companhia é no Teatroesfera, junto à estação de comboios de Monte Abraão.

Antes d’O Rei Vai Nu, as últimas peças que este grupo de atores levou ao palco foram O Pinóquio e O Capitão Miau Miau, das quais fizeram cerca de 220 apresentações num ano. Em setembro vão trazer-nos A Ilha Encantada, um original de Fernando Gomes.

O Rei Vai Nu no Teatroesfera

Minutos antes da peça os atores dão os últimos retoques na maquilhagem num ambiente descomprometido e animado. Quando a hora do espectáculo se aproxima abandonam o camarim que os cinco partilham e iniciam um breve aquecimento no palco.

Às 16h abrem-se as portas e o elenco recebe cada elemento do público e este instala-se no auditório acolhedor enquanto os atores vão conversando com eles. As luzes baixam e ouve-se a música que compõe um dos lemas da peça: ter um bom livro para ler é sempre um prazer.

David Granada junta-se a Tiago Ortis e Luis Pacheco e faz uma introdução sobre a história que vai encher o palco durante os próximos sessenta minutos. A partir daqui, somos testemunhas da vaidade do rei, da lábia dos dois falsos alfaiates italianos, da amizade de Silvina e Natércia e do medo geral da verdade, que pode pôr em causa a inteligência de quem não vê o mágico tecido.

No decorrer da peça os risos de fundo são quase constantes e há vários momentos de interação entre as duas partes, o que faz com que desvaneça a separação entre o palco e a plateia. Os espectadores vêm-se dentro da história, são convidados a fazer parte do desfile do Rei, com direito a lenços coloridos para acenarem a sua alteza. Outra particularidade desta companhia é convidarem as pessoas a passarem o seu aniversário no Teatroesfera. E assim foi. Neste dia estavam presentes na plateia dois aniversariantes. Por esse motivo, tiveram a oportunidade de participar no momento essencial da peça. E não, não podemos contar tudo, o melhor é irem assistir.

O Rei Vai Nu desfila por outros palcos

O Rei tem desfilado fora da Teatroesfera e fá-lo com gosto. Afinal, David confessou que o melhor que a peça lhe trouxe foi “poder mostrar os meus abdominais [risos] e desfilar em câmara lenta“.

Fazer digressão é uma novidade à qual o grupo se está a adaptar muito bem, Joana Campelo comentou “este tipo de experiência é uma coisa boa para o nosso grupo, acontecem coisas más mas nós aprendemos uns com os outros, e isso é bom. Sairmos daqui para outro espaço é um grande desafio”.

A digressão traz viagens e as viagens trouxeram um incidente trágico-cómico, como David chamou ao incidente da carrinha “chegas a casa e sempre com histórias para contar, tens coisas diferentes”.

Durante a entrevista os atores contaram, entre risos, o episódio de quando a carrinha com que se deslocam para as atuações ficou presa num arco de pedra, em Sintra. “Tivemos que esvaziar os pneus da carrinha para ela baixar e no processo de esvaziar pneus, stressados com as horas para a carrinha passar a tempo, o nosso colega David entra em contacto com o sítio onde íamos fazer o espectáculo e descobre que o espectáculo não era nesse dia!” Apesar deste episódio especialmente doloroso para a dita carrinha, quando questionados sobre se quem sofre mais são eles ou a carrinha, os actores garantiram que lhe fazem as vontades.

O elenco já passou por vários palcos, nomeadamente em Queluz, no Cacém, em Loures, em Alcobaça e na Delgada. O palco mais distante que O Rei Vai Nu pisou até agora foi em Vale de Cambra, em Aveiro.

 

O Público: dos três aos 100 anos  

Sendo um conto infantil, as crianças têm ocupado o maior número de cadeiras no público. Questionados sobre a reação dos mais pequenos, Luis Pacheco revela que “elas são espontâneas, logo, são muito mais verdadeiras. Se elas gostam, gostam, se não gostarem também dizem que não gostaram. Acabam por ser um público muito mais exigente precisamente por isso. Se tu não agradas notas muito facilmente, eles dispersam logo”.

Apesar de ser tradicionalmente uma peça infantil, O Rei Vai Nu torna-se numa peça que agrada facilmente a qualquer pessoa, de qualquer idade. Sobre a reação do público em geral, David Granada conta-nos que vêm “os miúdos a rir, os pais a rir, os avós dos miúdos a rir! Toda a gente sai daqui satisfeita, é um espectáculo infantil mas acima de tudo acho que é um espectáculo preparado para a família inteira, tanto que nós até já fomos a lares”.

Uma das intenções dos atores era corresponder às expetativas criadas pelo público que já os seguia e atrair mais pessoas. Luis explicou “nós habituámos-nos, na Malaposta, a agradar às pessoas ao longo destes anos todos e por isso o público foi crescendo de ano para ano. A ideia era manter esse nível” e disse ainda que “a maior parte das pessoas que continua a vir aqui são pessoas que nos seguem e que souberam que estamos aqui e resolveram vir atrás de nós”. David acrescentou que “vem cá muita gente que nos diz que viu O Pinóquio, O Capitão Miau Miau”.

A reação positiva do público deixa o elenco acreditar que vão voltar – não confirmo nem desminto a minha possível vontade de voltar, mas estou a acenar positivamente com a cabeça. Luis tem uma opinião particular: “eu acho que as pessoas vão voltar é porque o rei aparece em cuecas, se ele não aparecesse em cuecas, não voltavam”.

Saltimbancos Modernos

Esta companhia de atores procura claramente incentivar o gosto pelo teatro, pela leitura, pela cultura e pela arte. À conversa com o Espalha-Factos, David falou sobre a responsabilidade dos atores numa sociedade cada vez menos ligada à arte e à cultura: “o público vai-se interessando menos por cultura por factores programados por quem coordena estas coisas. Quanto menos culturas as pessoas tiverem, mais facilmente manipuladas são. Interessa que as pessoas tenham pouca cultura. É bom que as pessoas comecem a habituar-se a ter gostos culturais. Nós atacamos desde muito pequenas as pessoas que um dia mais tarde podem trazer os seus filhos, podem pensar de uma maneira diferente e não serem tão formatadas”.

Ana contou-nos que “até há uns anos atrás dizia que não achava piada às digressões porque achava que as crianças deviam ir ao teatro como vão ao cinema” mas a sua opinião mudou, pois reconhece a necessidade de adaptação à situação actual. Com as deslocações, estes atores levam o teatro mais longe, chegam a pessoas que de outra forma não poderiam assistir ao espectáculo.

Não são só rostos caracterizados, corpos vestidos a rigor e falas ditas ou cantadas. São atores que se desdobram em tarefas de produção, que não são, geralmente, da responsabilidade dos atores. Do cenário aos cartazes afixados nas ruas, o trabalho é deles. Desdobram-se até preencherem o espaço que vemos como palco. E de repente o palco é toda a sala porque todos se sentem dentro da história, ao lado do Rei, da Silvina, da Natércia, do Beltrani e do Fulani. Ao lado do David Granada, da Ana Landum, da Joana Capelas, do Tiago Ortis e do Luís Pacheco. Ao lado dos actores que chegaram ao Teatroesfera e lhe deram vida. Ao lado de Fernando Gomes, que tão bem adaptou o conto de Andersen, e envolvidos na música que também ele produziu.

Este é um teatro mais doce, mais próximo do público e é feito com um envolvimento que torna impossível ficar alheio ao momento catártico que acontece no Teatroesfera. Mais do que atores, este grupo de cinco saltimbancos modernos são uma nova forma de teatro.

Onde podes ver

A peça está em cena desde o dia 19 de setembro de 2015 e até ao fim de junho deste ano. Ana Landum, David Granada, Joana Campelo, Luis Pacheco e Tiago Ortis sobem ao palco aos sábados às 16h e domingo às 11h. A marcação para deslocações deve ser feita previamente, de terça a sexta-feira entre as 10h30 e as 16h. Pode ser feita através do e-mail oreivainuteatro@gmail.com ou do telefone 963 290 972 e o preço dos bilhetes varia entre 5€ e 6€.