Um “louco” que “quis grandeza qual a sorte a não dá”. É assim que Fernando Pessoa descreve El-rei D. Sebastião, o homem que, num laivo de loucura, decidiu compor um exército a partir da fina flor da nobreza portuguesa e embarcar para o Norte de África, numa missão suicida que custou a Portugal o chefe de Estado e, subsequentemente, a independência. Estas palavras serão também as mais apropriadas para descrever o D. Sebastião de Manoel de Oliveira, realizador centenário conhecido pelo uso da Literatura Portuguesa enquanto fonte primária dos seus filmes, e que escolheu a peça El-Rei D.Sebastião, de José Régio, como ponto de partida para a sua longa-metragem O Quinto Império – Ontem como Hoje.
Mantendo-se fiel à estrutura da peça, o ‘Mestre’ faz da palavra a principal condutora da história e mesmo os atores são, por vezes, dramaticamente teatrais no seus modos. Com o mesmo propósito, confina a ação num único espaço, o paço real, sendo que grande parte do tempo é passado nos aposentos do rei. Assim, no seu estilo conhecidamente minimalista, é através de uma câmara por vezes estática, por vezes panorâmica, que seguimos o jovem monarca nas suas passadas inquietas pelo palácio, entre o trono e a capela, onde vai procurar a bênção divina para o seu projeto militar. Se o enredo gira essencialmente em redor das dúvidas, inseguranças e ambições megalómanas de D. Sebastião, ou seja, da sua vida interior, é apenas lógico que a história se esconda ela mesma no interior do palácio, espaço psicológico que é metáfora ideal para a prisão do “Desejado” às suas próprias ânsias e à pressão colocada sobre os seus ombros pelos “egrégios avós”, representados nas estátuas que o olham fixamente na sala do trono.
Qual Hamlet de Shakespeare, O Quinto Império desenrola-se languidamente e sem pressas, arrastando-se em palavras medidas e silêncios prolongados. Mas se Hamlet é a tragédia da indecisão porque o protagonista é incapaz de atuar, a componente trágica de O Quinto Império está precisamente no conhecimento prévio que o espectador tem de que o rei não só vai agir, como vai falhar por completo nas suas aspirações. Deste modo, o tom do filme é nostálgico, melancólico e agoirento. A desgraça iminente é anunciada em sequências repletas de símbolos e imagens ominosas, como o momento em que a espada de D. Afonso Henriques é lançada ao ar para aterrar com eco no chão, ou a sequência em que o rei adormece e desliza cadeira abaixo, desaparecendo de cena perante a câmara estática e deixando o trono profeticamente vazio. A fotografia de Sabine Lancelin traz as sombras e a solenidade a espaços iluminados apenas por velas e luz natural, e a banda sonora de Carlos Paredes, com o ressoar triste das cordas da guitarra portuguesa, relembra-nos que o conceito de Fado já era parte da mística lusitana ainda antes de poder ser identificado com a música.
Ricardo Trêpa, neto do realizador e um dos seus atores fetiche, dá um D. Sebastião convincente, de rosto desassossegado e expressão ausente, como todos imaginamos o homem por detrás da lenda. De lábios vermelhos e traços efeminados, o “Encoberto” é-nos apresentado como uma criança mimada, vítima de adulações exageradas e de um discurso messiânico desde o berço, que o levam a acreditar ser o salvador da Pátria e um paladino do Cristianismo. A seu lado, estão veteranos como Luís Miguel Cintra (no papel do Sapateiro Santo), Glória de Matos (enquanto Rainha D.Catarina) e David Almeida, Ruy de Carvalho e Luís Lima Barreto (como conselheiros do rei), que contribuem enormemente para elevar a qualidade do filme.
Mas mais do que um mapa psicológico de uma personagem-chave da nossa História, O Quinto Império é um manifesto bastante atual contra doutrinas e ideais imperialistas que continuam a ser uma realidade, ainda que disfarçados sob diversas formas, nas sociedades democráticas contemporâneas. Na sua estreia oficial no Festival de Veneza (no qual Manoel de Oliveira foi galardoado com o Leão de Ouro de carreira), houve até quem interpretasse o filme como uma crítica anti-Bush, bem como uma censura aberta aos conflitos religiosos e à supremacia do Ocidente, garantida pelo poderio económico e pela força militar.
O ‘Mestre’ não desilude. O Quinto Império é tanto uma denúncia intemporal dos males da classe política portuguesa – na Monarquia como na República, “ontem como hoje” – como uma carta de amor aos valores culturais e aos mitos e lendas que constituem o imaginário do povo português. Humanizando um homem que, para a maioria, é um herói de uma história que ficou por contar, Manoel de Oliveira força-nos a questionar a nossa concepção do passado, bem como a imagem mental que construímos do nosso presente.
Ficha Técnica:
Realização: Manoel de Oliveira
Argumento: José Régio (peça); Manoel de Oliveira (adaptação)
Elenco: Ricardo Trêpa, Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho, Glória de Matos, David Almeida, Luís Lima Barreto, Miguel Guilherme
Duração: 127 minutos
9/10