Filipe Faria nasceu a 11 de fevereiro de 1982 em Lisboa. Durante o seu percurso estudantil na Escola Alemã de Lisboa, a descoberta do Tolkien Bestiary ajudou a fomentar a sua paixão pela escrita e universo fantástico. Dessa paixão surgiu o primeiro volume da saga Crónicas de Allaryia, chamado A Manopla de Karasthan, que lhe valeu, em novembro de 2001, o Prémio Branquinho da Fonseca, atribuído pela fundação Calouste Gulbenkian.
Espalha-Factos (EF): Quando e como surgiu esta paixão pela escrita e pelo universo fantástico?
Filipe Faria (FF): A paixão pela escrita quase sempre esteve lá. Foi o veículo que cedo descobri para expressar o que me ia na alma, e contar histórias foi algo que sempre fiz, fossem elas petas aos meus pais, embelezamentos de eventos que me tinham sucedido, ou simplesmente pequenas aventuras que eu escrevinhava, acompanhando-as com desenhos. O meu traço era, contudo, uma limitação, e acabei por me deixar dos desenhos para me ficar apenas pelo texto. A transição definitiva deu-se em casa da minha avó, onde não resisti ao encanto de uma máquina de escrever eléctrica, que usei e da qual abusei ao longo dos verões que lá passava em férias.
O fantástico surgiu na minha vida por ter sido o primeiro género literário a cativar a minha atenção. A marca que em mim deixou é indelével e ainda hoje está a ter repercussões, talvez já não tanto a nível de preferência de leitura, mas de influência na minha escrita e no meu processo de construir mundos.
EF: Ser escritor vai ao encontro daquilo que sempre quiseste ser ou esperavas seguir uma carreira diferente na tua vida?
FF: Uma vez que eu não fazia ideia do que queria ser quando fosse grande, podemos dizer que foi um feliz acaso, que me permitiu descobrir qual o caminho que eu queria seguir na vida, e qual a plataforma através da qual eu iria expressar a minha verdadeira paixão. Mesmo que não me tivesse tornado escritor, teria provavelmente continuado a escrever, ainda que apenas para mim. Ao menos assim posso ambicionar um dia poder viver exclusivamente da minha paixão.

EF: Crónicas de Allaryia é o primeiro e talvez o mais marcante trabalho da tua carreira. Como foi criar um mundo tão vasto e complexo como este?
FF: Foi um processo perfeitamente natural e orgânico. A minha mente e imaginação pululavam com um mundo que esboçara na minha cabeça ao longo de anos, e que ansiava por sair, ganhar forma e evoluir de forma natural à medida que era escrito. Foi um desafio que de bom grado aceitei, pois permitiu-me aplicar e elaborar sem quaisquer restrições uma série de tópicos que me interessavam e formar com eles um mundo de fantasia que pudesse popular com todas as ideias que já me acompanhavam havia anos. Depois disso, foi só deixá-lo evoluir à medida que escrevia.
“A marca que (o género fantástico) em mim deixou é indelével e ainda hoje está a ter repercussões, talvez já não tanto a nível de preferência de leitura, mas de influência na minha escrita e no meu processo de construir mundos” – Filipe Faria
EF: Quais foram as tuas maiores inspirações durante a conceção das Crónicas de Allaryia?
FF: Por esta altura, referir O Senhor dos Anéis já é uma mera formalidade, mas nunca poderei deixar de o fazer. Ainda que numa fase mais tardia, o Rivan Codex de David e Leigh Eddings foi também um estímulo e um – chamemos-lhe assim – apoio logístico para a criação de um mundo. No entanto, a nível de inspiração, tanto um como o outro foram meras notas de rodapé quando comparados com as sessões de Dungeons & Dragons em que eu fazia de Mestre de Jogo para os meus amigos. A quantidade de ideias que daí advieram são incontáveis (aliás, muitas vezes me foi feita a crítica acertada de que A Manopla de Karasthan faz lembrar uma sessão de D&D) e a estaleca que aí ganhei a criar mundos e contar histórias foi um treino cuja importância nunca será demais sublinhar.

EF: Felizes Viveram Uma Vez é o teu segundo trabalho depois da massiva aventura à qual dedicaste muitos anos da tua vida. Como foi essa transição de uma história mais longa, detalhada e totalmente criada por ti para algo mais simples e baseado nos contos de fadas?
FF: Foi uma transição tão simples como alguém decidir que precisa de férias, mas que não quer deixar de fazer aquilo que lhe dá prazer, por isso parte simplesmente para outra. Fez-me mais espécie a sensação de que estava a brincar com os brinquedos de outros, visto que estava a usar figuras do domínio público e do imaginário coletivo, mas rapidamente desenvolvi um sentimento de posse à medida que ia desenvolvendo os personagens. Podem não ser os meus filhos “biológicos” como o são os das Crónicas de Allaryia, mas criei-os como se fossem meus, por assim dizer, e dá-me um gozo especial dar voltas inesperadas aos contos de fadas.
EF: Para além destes dois trabalhos, foste colaborando noutros projetos que, de certa forma, fugiam um tanto àquilo a que estavas mais acostumado a lidar (alguns exemplos foram Leopoldina e a Ordem das Asas e Talismã). Fala-nos um pouco sobre como foram essas experiências.
FF: A minha paixão é contar histórias, e tive a felicidade de começar a contar o tipo e formato de história que mais prazer me dá, mas sempre estive aberto a experimentar outras vertentes. O Talismã foi algo de muito natural, até porque cresci um ávido leitor de banda desenhada e ambiciono um dia ter a meu cargo personagens como o Super-Homem, mas para isso é preciso ter obra publicada e darmo-nos a conhecer. O Talismã foi um primeiro passo nesse sentido, uma ideia original do meu caro artista Manuel Morgado, que fui incumbido de desenvolver, elaborando uma história com base numa série de pranchas que ele já tinha desenhado. Foi um desafio extremamente interessante e gratificante para mim.
Quanto à Leopoldina e a Ordem das Asas… não há como escamotear a questão. Foi mesmo pelo dinheiro. Fico grato pela oportunidade que me foi concedida (diga-se o que se disser, a verdade é que foi algo de grande visibilidade) e pela confiança em mim depositada, mas não é o tipo de projecto que me dê realmente prazer e que eu me veja a encetar novamente de futuro.
“O género fantástico oferece-me tudo aquilo que eu, enquanto escritor, posso desejar: a liberdade sem limites de um género que nunca os teve” – Filipe Faria
EF: A Alvorada dos Deuses é o teu mais recente trabalho, desta vez misturando factos históricos com fantasia. Como foi a conceção deste novo livro?
FF: Foi a história que mais tempo levei a conceber e levar a cabo (dez anos). Nasceu como um projecto de BD, deu todo o tipo de voltas e reviravoltas, com drama real e humano à mistura e acabou por vir ao mundo na forma de um livro. Foi um trabalho de paixão e interesse académico, nascido da minha relação de amor com a Islândia e padreado por altos-sacerdotes pagãos, bispos luteranos e antigos zeladores de ruínas de mosteiros. É uma história muito diferente de todas as outras que até hoje escrevi, embora estejam lá patentes as minhas marcas registadas (cenas de combate épicas e arcaísmos). E é, acima de tudo, a primeira história que escrevi na qual posso dizer sem reservas que há uma mensagem que procuro transmitir – uma mensagem positiva e apropriada para os nossos tempos, ouso presumir – e tenho muita curiosidade em saber quais as ilações que os leitores dela tirarão.

EF: E projetos para o futuro? Abraçarás novos desafios na escrita ou manter-te-ás no género fantástico? Poderemos esperar algum futuro regresso a Allaryia?
FF: Como costumo dizer em palestras, o género fantástico oferece-me tudo aquilo que eu, enquanto escritor, posso desejar: a liberdade sem limites de um género que nunca os teve. Por esse motivo, não me vejo a sentir a necessidade de explorar outros géneros, embora não ponha de parte essa possibilidade.
Quanto a Allaryia, podemos esperar um regresso, sim, senhor. Estaria a mentir se dissesse que nunca mais senti o bichinho allaryiano, até porque, convenhamos: é o meu mundo. É o meu bebé, o fruto de quinze anos intensos da minha vida, e a história dele e a dos companheiros está longe de terminada. Mas não será para já.
“A fantasia, tal como muitas outras coisas, é cíclica, e não duvido de que o futuro trará novamente uma conjuntura mais propícia para novos autores de fantasia portugueses” – Filipe Faria
EF: Qual é a tua visão sobre o panorama literário em Portugal? Pensas que a high fantasy tem futuro no nosso país?
FF: No que ao panorama fantástico diz respeito, tive a felicidade de ter entrado em cena quando se deu o boom da fantasia no nosso país (e de ter dado a minha contribuição para ele, gosto de pensar em momentos de maior imodéstia como este), mas é inegável que a coisa abrandou bastante nos últimos anos. O que não significa que não tenha futuro, pois não foi o único género literário a sofrer, e sei por experiência própria que há muito boa gente por aí com muito boas ideias. A fantasia, tal como muitas outras coisas, é cíclica, e não duvido de que o futuro trará novamente uma conjuntura mais propícia para novos autores de fantasia portugueses.
Quanto ao panorama literário de um modo geral, só posso debitar os lugares-comuns que não são novidade para ninguém. Comparados com os habitantes de muitos países, os portugueses em geral lêem pouco e, tal como os habitantes de muitos outros países, tendem a cingir-se à leitura de tópicos atuais, à literatura dita obrigatória ou ao livro que inspirou o mais recente filme/série de TV. Felizmente, uma vez que qualquer autor que se preze escreve porque gosta ou sente necessidade de o fazer, isso nunca impediu a consagração das brilhantes vozes literárias que Portugal já deu a conhecer ao mundo e certamente continuará a dar.
EF: Crês que as novas gerações continuam a interessar-se pela literatura ou vês um decréscimo desse mesmo interesse à medida que os anos vão passando?
FF: A literatura é algo de edificante, mas, convenhamos, é acima de tudo uma forma de entretenimento. E entretenimento é coisa que não falta aos jovens hoje em dia, das mais variadas formas e feitios. Como se isso não bastasse, a literatura é uma forma de entretenimento ativa, que – seja em papel ou em formato electrónico – exige algo da parte do leitor, e a concorrência passiva é feroz e está por toda a parte à distância de um mero clique nos tempos que correm. Há que reconhecer essa desvantagem inerente dos livros e não tentar escamoteá-la, e enfatizar aquilo que a literatura oferece e que outras formas de entretenimento não têm como dar. Pelo menos é o que eu tento fazer passar, sempre que me convidam a escolas para falar com a malta nova.

EF: Que conselhos dás àqueles que queiram iniciar a sua carreira na escrita, independentemente do género literário?
FF: Primeiro, não devem nunca encará-lo como uma carreira. Isso é algo a que só alguns eleitos (nos quais ainda não me incluo, para que conste) podem ambicionar. Não escrevam com o fito de serem publicados, mas sim porque vos dá prazer e supre uma necessidade de deitarem cá para fora o que vos vai na alma, seja o que for. Querem escrever? Escrevam. Gostam de escrever? Continuem. Querem continuar a escrever e fazê-lo melhor? Leiam. Querem publicar algo? Acabem o que começaram e enviem-no a uma editora. Foram aceites? Parabéns. Foram recusados? Partam para outra ou aprimorem o que escreveram. Para ser publicado, são precisas duas de três: talento, perseverança, sorte. E raras, raríssimas são as vezes em que a perseverança não teve um papel a desempenhar, uma vez que é aquela que está ao alcance de todos.