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Entrevista EF: Gerson Antunes, estagiário no programa Global Talent

Gerson Antunes tem 26 anos e nasceu em Oeiras. É licenciado em Economia pela Nova SBE e tirou um mestrado no mesmo curso, na Faculdade de Economia do Porto. A AIESEC foi uma presença um pouco tardia na vida académica de Gerson (entrou apenas no inicio do seu terceiro ano de licenciatura), e foi a razão pela qual desistiu do Erasmus que sempre planeou fazer. Mas isso não o impediu de voar até Marrocos, um ano depois da conclusão do seu mestrado para estagiar num dos mais importantes motores de busca de hotéis. O Espalha-Factos esteve a falar com o Gerson e conta-te um pouco mais sobre essa aventura.

Como foi o teu progresso dentro da AIESEC?

Eu entrei para a equipa de Finanças na altura, dentro da AIESEC in Nova. Há eleições todos os anos e passado algum tempo eu candidatei-me à direção e fiquei no cargo a liderar a equipa onde eu tinha estado antes, na parte financeira o que aumenta o nível de responsabilidade e o tempo que temos de dar à organização. A seguir, quando fui para o Porto, a posição que ocupei já era de presidente de um núcleo local. Acabei por não ocupar nenhuma posição a nível nacional porque o tempo estava a esgotar-se a nível académico. Mas eu sabia que ainda não estava acabado porque sabia que ia ter a parte internacional que ainda não tinha tido.

A parte internacional que te referes é o teu estágio?

A AIESEC tem dois programas: o Global Citizen, virado para experiências de voluntariado e o Global Talent mais virado para experiências profissionais num contexto empresarial. Eu saí de Portugal para fazer o Global Citizen, um estágio de voluntariado curtinho, de seis semanas. Mas quando cheguei a Marrocos parecia que as seis semanas não chegavam, parecia que ia deixar coisas por fazer. Então pensei, como já estava em Marrocos, podia passar pela plataforma da AIESEC e ver que empresas estavam à procura de pessoas da AIESEC para estagiar.

Na altura havia uma empresa que é a Prestigia.com e, para estagiar nela, tive que mudar de cidade (estava a viver em Rabat e mudei-me para Casablanca). Tive imensa sorte porque o departamento onde eu fui calhar na Prestigia tinha sido uma invenção recente: nasceu da fusão de dois departamentos que existiam antes. E eu fui a primeira pessoa a entrar para esse novo departamento. Foi uma oportunidade incrível porque durante todo o tempo que lá estive, porque, desde a minha entrada até à entrada da segunda pessoa, passado um mês e meio, eu assumi funções de liderança de toda o departamento, que a meio do estágio chegou às 7 pessoas de 5 nacionalidades diferentes. Dentro da equipa falava-se ao mesmo tempo 4 ou 5 línguas. A empresa é uma online travel agency, em que tu pesquisas o hotel que queres e pões as datas da tua viagem e pronto. Éramos focados em hotéis de 4 e 5 estrelas, e, portanto, era um nicho de mercado mais sofisticado.

Acabei por estar num ambiente muito multi cultural, a assumir uma posição que eu nunca imaginei para primeiro emprego, uma posição para a qual somos puxados dentro da AIESEC mas acaba por não ser normal. Este departamento já vai na terceira geração e as ferramentas que eles utilizam são as que criámos na altura. Na altura fizemos coisas giras e diferentes, como fazer um vídeo para quem está a interagir connosco por parte dos hotéis: um vídeo-tutorial a explicar como é que se podia introduzir várias coisas sobre um hotel na nossa plataforma.

O trabalho do dia-a-dia era garantir que todo o conteúdo das páginas dos hotéis estavam de acordo com a realidade, a nível de preços dos quartos que havia, de algumas promoções, política de cancelamento, geríamos a equipa de tradutores (que não estava lá no escritório porque estavam lá nos seus países). Embora eu estivesse a coordenar a equipa distribuía o jogo: cada um de nós tinha o seu set de países pelos quais era responsável. Já sabíamos que se o hotel fosse no tal país era da responsabilidade de tal pessoa.

Uma posição de chefia de uma equipa de 7 pessoas é muito bom para quem acabou de sair de um mestrado…

Foi uma sorte! Não foi uma posição para a qual eu tivesse sido recrutado porque se calhar aí a própria empresa tinha ido buscar uma pessoa com experiência. Não: decidiram criar aquele departamento e o facto de eles terem aberto aquela posição coincidiu com a minha candidatura e depois tudo surgiu também da dinâmica que eu e as primeiras pessoas acabámos por criar. Eles confiaram em mim e correu tudo bem.

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A tua estadia em Marrocos durou quanto tempo ao todo?

Era para durar 6 semanas e durou 10 meses. Foi quase o ano de 2013 todo.

Porquê Marrocos?

Eu não tinha muito dinheiro na altura. Recebia uma mesada dos meus pais porque não trabalhava. E queria um choque cultural. E achei, talvez mal, que na Europa era mais difícil ter esse choque que eu procurava do que num país fora da Europa. Então, face ao dinheiro que tinha, a opção mais viável era Marrocos. Tanto que eu nem fui de avião: a primeira vez que fui para Marrocos (porque só ia lá estar 6 semanas) fui de autocarro, comboio, etc. Porque isso ficava-me tudo à volta de 100€ e o voo estava a 200/300€. Foi uma escolha mais racional do que emocional.

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Tiveste dificuldade com a língua ou adaptaste-te bem?

A minha história com a língua (e a de qualquer pessoa que visite Marrocos) é muito engraçada porque qualquer português arranha o francês e se desenrasca muito mas temos sempre aquela curiosidade de aprender a língua local. Tentamos aprender mas começamos a perceber que o árabe que ensinam no Youtube, por exemplo, é o árabe arcaico, que já ninguém usa. A língua que se fala não é a língua que se escreve. Então acabei por ter uma experiência que é a experiência de uma criança: como é que uma criança aprende a falar? Decora as palavras. No fim, nunca contei, mas acho que já conseguia dizer umas 100 ou 200 palavras, só que depois não conseguia construir uma frase. Depois há uma data de palavras que são parecidas ao português, o que é logo uma ajuda.

Em relação à cultura achaste-a parecia à portuguesa ou nem por isso?

Sim e não. Reconheci-nos enquanto país em algumas coisas. Parece que estamos no meio. Nós não somos tão pontuais como os alemães ou como os ingleses mas também não somos como os marroquinos. Somos muito mais compreensivos e desculpamos mais, tal como eles. Eles também se desculpam muito: aliás, a forma como eles dizem “cheguei atrasado porque perdi o comboio“, a frase correta, numa boa tradução do darijah é “cheguei atrasado porque quando cheguei à estação o comboio já tinha passado” o que diz muito sobre a sua cultura.

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Essa foi então a maior diferença para ti…

Sim, mas também há a questão da religião que está muito enraizada no país e que se nota muito, embora seja, do mundo árabe, o país mais liberal. O choque principal vai sempre dar aí.

Em relação à gastronomia, conseguiste adaptar-te?

Eu tenho um problema com a comida marroquina que tive de ultrapassar: os cominhos. Está por todo o lado e quem não gosta de cominhos tem um problema com aquela comida porque eles usam muito. E depois é uma coisa que tu não podes dizer: “olhe, tire-me os cominhos”, porque primeiro não sabes dizer e depois, muitas vezes, as coisas já estão feitas. Então olha, tive de me habituar. Aquilo de que eu me convenci foi que não me vou privar de usufruir da cozinha deles só porque tem cominhos e a partir dessa decisão correu bem.

A apresentação e o empratamento em Marrocos também é completamente diferente do que nós estamos habituados. Os sabores estão todos misturados o que dá depois uma mistura mais forte de sabores, mas os ingredientes acabam por ser muito parecidos porque são mediterrânicos: o azeite, as frutas, etc. Eles adoram especiarias. Percebi, quando lá estive, que a cozinha portuguesa é um bocado triste nesse aspeto dos temperos. Nós metemos sal e achamos que fica bem. Lá não, lá há todo o tipo de especiarias que eles utilizam em quase todo o tipo de refeições.

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Foi muito difícil criar um elo de ligação com os marroquinos ou achas que são um povo fácil de abordar?

Eles é que te abordam a ti, tu não tens de fazer nada. É indiscritível. Por exemplo, não consegues ir a casa de ninguém sem teres de comer. Uma das coisas culturais diferentes é que é mesmo má educação não provar, nem que seja um bocadinho. Eu fui logo avisado disso. E comi imenso, engordei quando lá estive. A culpa disso é que ia muitas vezes a casa das pessoas porque elas convidavam, fossem ricos fossem pobres. Tive situações em que isso me aconteceu, porque o prédio onde eu vivia era um prédio na medina, mas não era um prédio de ricos, era um prédio bom mas de pessoas mais pobres. E eu acho que fui comer à casa de quase todos os vizinhos do prédio. Sexta-feira era dia de couscous e nós éramos sempre convidados. Eles comem couscous com as mãos – há um prato enorme, e nos restaurantes dão-te uma colher, mas em casa não tens colher absolutamente nenhuma.

Isto para provar que eles são super acolhedores e super boas pessoas para ajudar. Mas também há o contrário. Na nossa cultura temos a cultura de perdoar e dar a outra face. Lá, se tu te dás mal, dás-te mesmo mal e não gostam de ti. São influências que acabam por vir da religião.

Nesse aspecto são muito mais radicais?

Sim e há coisas: imagina, eu levei para lá o meu carro, que não é muito comum. E eles avisaram-me na altura que tinha que ter cuidado. Porque lá quando alguém atropela uma pessoa e essa pessoa morre – e lá eles não respeitam as passadeiras como nós respeitamos aqui – a pessoa é presa imediatamente. E não é presa por ter feito mal, é presa para proteção da pessoa. Porque pode acontecer a família da pessoa que foi atropelada…

Querer vingança?

Não é vingança. Não sei explicar. É uma coisa que puxa o radicalismo mas que não tem nada a ver com a religião – para não entrarmos aqui em clichés – mas nota-se que as posições são um bocadinho mais radicais.

Conheceste mais alguma cidade dentro de Marrocos para além de Rabat e Salé?

Sim. Casablanca não é uma cidade muito bonita. A zona onde eu vivia, a medina, era bonita, mas não é uma cidade gira. Tem poucos sítios de recreação, tu andas pela cidade e não os vês. Então na sexta-feira à tarde tinha o carro cheio de gente para irmos passear e voltar no domingo, se fosse preciso às 5 da manhã, para dormirmos 2/3h e irmos trabalhar.

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Qual é a que te deixa mais saudades?

Rabat. Rabat é a capital, não por ser a maior, mas acaba por ter mais atenção porque o Rei vive lá. Tem um estilo colonial francês na parte histórica, a estação de comboios é um sítio lindíssimo. Tem a parte do castelo, o Kasbah, tem um rio… Rabat é a cidade mais bonita, mas curiosamente não é a cidade mais visitada. As mais visitadas são Fez e Marraquexe. Não te sei explicar porquê.

Não gostaste de visitar essas cidades?

Fez gostei. Quando fui a Marraquexe tinha poucas semanas de Marrocos. A minha relação com Marraquexe foi evoluindo à medida que lá voltei. Da primeira não gostei, da segunda já gostei um bocadinho mais e a terceira foi um bocado mais fugida, mas também gostei. Porque é muito turístico – eu não sou daqueles que acha que turístico é mau, até pelo contrário, se é turístico é bom. Mas ali é turístico no sentido chato do termo. Eles chateiam-te para comprares tudo e depois querem-te impingir coisas.

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A nível pessoal, achas que cresceste por teres vivido tanto tempo noutro país?

Sim. Principalmente a ser muito mais cauteloso na avaliação dos estereótipos porque como aqui em Portugal há de tudo, lá também. Quando falamos de experiências internacionais somos levados a pensar que as pessoas de cada país têm uma série de características e ao estar lá percebemos que há pessoas boas e más em todo o lado. Se calhar somos 70% nós e 30% do país em que estamos inseridos e não é mais do que isso. Se jogarmos sempre com essa percentagem, não apagamos completamente os estereótipos, porque eles não são falsos, mas contamos com eles apenas a 30% e não a 100%.

Tendo em conta a tua experiência, recomendarias a AIESEC aos mais aventureiros?

É um trampolim importantíssimo, mas tu só saltas se quiseres. Vais ter todo o ambiente à tua volta a fazer força para que saltes. Mas não te vai obrigar a fazer nada que não querias, portanto há espaço na AIESEC para os menos aventureiros.

Eu geri pessoas que o que queriam da AIESEC era aprender contabilidade, como fazer um orçamento, um mapa de tesouraria e coisas do género e era isso que lhes interessava. Agora, se eles quisessem dar o salto, tinham ali toda a envolvente para dar o apoio necessário a isso. Quer seja nas dúvidas, na forma de reagir a determinadas coisas, nas coisas que precisam de desenvolver para dar esse salto.

A AIESEC é para toda a gente, mas acaba por tirar mais da AIESEC quem der o tal salto.

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