O Espalha-Factos terminou. Sabe mais aqui.
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A ‘Entrada Livre’ de Eunice e Amantes no D. Maria II

Três dias de portas abertas, três dias de Arte, Cultura e História. Um fim de semana de espetáculos gratuitos serviu para comprovar que, quando fatores financeiros não se atravessam no caminho, o público lisboeta está sedento por teatro. Muitos foram aqueles que foram à fonte, o Teatro Nacional D. Maria II, matar a sede no Entrada Livre, durante os dias 11, 12 e 13 de setembro.    

Uma sala cheia aplaude de pé. Aquelas palmas eclodem respeito, clamam admiração. Os olhares centram-se todos num único ponto, ao centro. Está uma lenda entre nós. E a lenda voltou a casa, ao lugar onde a sua história começou a ser escrita. Em 1941, a companhia de Amélia Rey Colaço apresentava a peça Vendaval, de Virgínia Vitorino e, com ela, uma jovem promissora aterrava no mundo do teatro. Passaram-se 74 primaveras (e verões, outonos, invernos, que o teatro faz-se o ano todo!) desde que Eunice Muñoz pisou pela primeira vez aquele palco.

Foi o primeiro espetáculo do dia a esgotar. Uma fila que contornava todo o edifício do Teatro Nacional, até chegar quase junto ao Palácio da Independência, no Largo de São Domingos, um verdadeiro mosaico humano, estende-se à nossa frente: pessoas de todas as idades, géneros, origens geográficas e sociais agarram-se à esperança de conseguir bilhetes para os espetáculos gratuitos que ali vão ter lugar ao longo do dia.

As filas começaram a formar-se desde as 11h30, apesar de a bilheteira só abrir às 13h. É domingo, dia 13, mas o cenário repetiu-se ao longo dos três dias que durou o evento que celebra o início da temporada no Teatro Nacional e, nas palavras do Diretor Artístico do D. Maria II, Tiago Rodrigues, o ato de liberdade que é entrar num teatro. Também por essa liberdade há que lutar. Esperaram ao sol e à chuva – que o tempo nos primeiros dias de setembro é sempre incerto – mas os “candidatos a espetadores” que integram a zona final da fila têm a consciência de que já muito dificilmente conseguirão bilhetes, todavia a esperança é a última a morrer!

Colecção de Amantes ©Filipe Ferreira (5)

Entretanto, funcionários do D. Maria II vão alegremente distribuindo sacos de pano com o logótipo do Teatro e a programação da sala de espetáculos, como “prémio de consolação” para aqueles que já não vão conseguir ter a oportunidade de entrar gratuitamente. Pouco passava das 14h da tarde quando vêm até à fila informar que não há mais bilhetes. 74 Eunices, Electra e Colecção de Amantes, os três espetáculos principais do dia estão esgotados em pouco mais de uma hora. “Mas as leituras encenadas estão prestes a começar e para essas não é preciso bilhetes”, relembram os funcionários do D. Maria II. E não só. Durante todo o fim de semana, o D. Maria II proporcionou também concertos, oficinas e uma exposição de entrada livre. Entretanto, junto à fachada do edifício, decorre a primeira feira do livro do teatro, que, apesar de louvável a iniciativa, a concretização deixa muito a desejar – bastava entrar pela porta da livraria do D. Maria II, ali mesmo ao lado, para ter acesso a uma muito maior variedade de obras dramatúrgicas.

“Colecção de Amantes é muito mais performance que uma peça de teatro”

O primeiro espetáculo a contar com a presença do Espalha-Factos é Colecção de Amantes, o primeiro projeto do Ciclo Recém-nascidos a ir a cena, na Sala Estúdio. Colecção de Amantes é muito mais performance que uma peça de teatro. Um projeto construído e desenvolvido em continuidade. O conceito, a direção e a interpretação, todos dizem respeito à rapariga que se encontra à nossa frente. Uma colecionadora compulsiva.

Enquanto o público toma os seus lugares na plateia, escuta os nomes que Raquel André enuncia repetidamente, os nomes dos seus amantes. Ao longo de dois anos, a artista teve 73 encontros com desconhecidos. Entrou nas suas casas, invadiu a sua privacidade e atuou como se de um encontro entre dois amantes se tratasse. A encenação de uma intimidade construída era registada, em cada encontro, com uma (ou mais) fotografia(s), que constituem a base para a montagem do espetáculo.

Raquel começa por enumerar dados estatísticos sobre os seus encontros: onde foram, o intervalo de idades dos seus amantes, o número de fotografias tiradas, aquilo que queriam fazer e fotografar, os temas de conversa, aqueles com quem desejou que o tempo passasse mais depressa e aqueles com quem desejou que o tempo passasse mais devagar, os elogios ao seu cabelo, e até o número de amantes que estavam ali presentes, na Sala Estúdio do D. Maria II, naquele momento. Depois, avança para histórias e momentos concretos desses encontros: aquele em que a única coisa que se consegue lembrar é do segredo que a amante lhe revelou, aquele em que um senhor de idade lhe segura as duas mãos com ternura e verdade. A dado momento, narra-nos sucessões de fotos, num misto entre verdade e ficção, construindo narrativas, histórias das relações que aquelas fotos poderiam representar, das histórias que aqueles encontros poderiam ter sido, de amores possíveis numa infinidade de sentidos.

Colecção de Amantes ©Filipe Ferreira (9)

Raquel André tem uma presença carismática, consegue manter-nos interessados na realidade enigmática do seu projeto”

Colecção de Amantes é um exercício que apela ao instintivo, a abandonar convenções, ortodoxias e zonas de conforto na relação com o outro. Raquel André tem uma presença carismática, consegue manter-nos interessados na realidade enigmática do seu projeto, dos seus encontros, da sua coleção, e intrigados com os segredos que escondem as fotos de cada um dos seus amantes. O próprio público é convidado a fazer parte da coleção de Raquel, que reserva um momento do espetáculo para que a audiência a fotografe e envie essas fotos para a sua página de Facebook.  O espetáculo termina com o “congelamento” do momento numa “fotografia”, um trabalho visual tecnicamente incrível e esteticamente memorável e com uma série de questões por responder: o que é uma relação? O que é intimidade e quão efémera pode ser? Até que ponto podem ser forçadas, até que ponto podem ser construídas? São um fenómeno de que ordem?

As perguntas pairam no ar enquanto o foyer do D. Maria II começa a movimentar muita comunicação social e caras do meio do espetáculo. 74 Eunices, a peça que irá homenagear os 74 anos de carreira da atriz Eunice Muñoz, é o grande final do evento. Antes de mais, Tiago Rodrigues abre as hostes e começa por enaltecer o sucesso da iniciativa do Entrada Livre, a forma como o público afluiu e como é ele o verdadeiro merecedor do Teatro. Como não podia deixar de ser, elogiou-se Eunice Muñoz e a sua história no D. Maria II.

Seguiu-se Diogo Infante, que leu excertos do livro de conversas com Eunice Muñoz ali lançado, naquele dia, Acima de Tudo Amar a Vida, da autoria de Vítor Pavão dos Santos, que também fez questão de elogiar a amiga de longa data e revelar alguns pormenores da história de como a conheceu e de algumas das conversas entre os dois que motivaram a escrita do livro. Por último, Miguel Honrado, Presidente do Conselho de Administração do D. Maria II, apresentou o plano de trabalho a desenvolver ao longo das próximas temporadas no Teatro, destacando o projeto Rede Eunice, que fará circular pelo país, até às zonas onde existe uma fraca oferta teatral, as peças produzidas pelo D. Maria II.

Antes que a peça pudesse começar, um telemóvel toca na plateia e, com o sentido de humor no ponto, Tiago Rodrigues “segura” Diogo Infante para evitar a repetição de tragédias passadas.

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O momento tão aguardado chega: sobem ao palco 74 atrizes portuguesas para dizer palavras outrora proferidas por Eunice Muñoz, nas várias peças com que subiu ao palco do Teatro D. Maria II, ao longo destes 74 anos de carreira. Fragmentos de peças tão diferentes e variadas – de Beckett a Gil Vicente, passando por La Féria, Brecht e Dantas – são montadas de forma a encaixar no ambiente da situação, o desconforto e o constrangimento associados a uma cerimónia como uma homenagem. Pelo meio, sacam-se alguns risos e exclamações ao público, com uma ou outra insinuação e provocação ao mundo do teatro e ao país. Uma encenação de Cristina Carvalhal que reuniu uma diversidade imensa de talentos mais que reconhecidos e aclamados, sendo uns da velha guarda, outros no auge da carreira e alguns a dar os primeiros passos. 74 mulheres portuguesas que, tal como Eunice fez toda a vida, dedicam a sua existência ao Teatro.

“Muito emocionada e exibindo uma humildade impressionante, Eunice expressou o seu agradecimento ao D. Maria II, a Tiago Rodrigues e o desejo de voltar a pisar aquele palco”

Duas ovações de pé não foram suficientes e Eunice Muñoz teve direito a uma tríade de aplausos que ecoaram o peso da figura de Eunice naquela casa e no Teatro Português. Afinal, não é todos os dias que se vê Simone de Oliveira a ajoelhar-se aos pés de alguém. Um aplauso inacabado e que nunca será cessado enquanto a história feita por Eunice perdurar nas memórias de quem a tem acompanhado. Muito emocionada e exibindo uma humildade impressionante, Eunice expressou o seu agradecimento ao D. Maria II, a Tiago Rodrigues e o desejo de voltar a pisar aquele palco. Quem sabe, para breve?

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Assim terminam três dias de Entrada Livre, a melhor forma de entrada na nova temporada artística. Porque a Cultura é, inegavelmente, um bem de primeira necessidade e precisa de estar ao acesso de todos, esta foi uma iniciativa extremamente meritória, pela qual o Teatro Nacional D. Maria II está de parabéns. A julgar pelo sucesso do evento, só pode ser para repetir!

Fotografias de Filipe Ferreira