O Espalha-Factos terminou. Sabe mais aqui.
game-thrones-season-5

Game of Thrones: quando a realidade é mais sádica que a ficção

Game of Thrones assume-se hoje como uma das principais sagas literárias de fantasia da actualidade e como uma das séries mais vistas no mundo inteiro. O Espalha-Factos propõe agora uma viagem no tempo até à Europa medieval para perceber que episódios da História europeia inspiraram George R.R. Martin – autor dos livros e claro aficionado por História – para escrever algumas de cenas mais marcantes e chave de todo o universo de GoT.

Todos sabemos que George R.R. Martin sempre admitiu inspirar-se muito na História medieval europeia, o que é notório nas características dos sete reinos. O Norte frio, pouco populado e com abundantes lendas sangrentas, uma representação perfeita da Escócia medieval. As Riverlands, com as suas cidades entre rios e planícies gigantes, muito a captar aqui a Holanda e a Bélgica. As terras dos Lannister – kingdom of the rock – ricas e proliferadas de minas, uma Inglaterra de Westeros. O Reach sendo a França, Dorne é Portugal e Espanha, etc.

Posto isto, neste primeiro artigo vamos conhecer um dos momentos fulcrais na história de Game of Thrones – tanto nos livros como na série – e perceber quais foram as influências de Martin para escrevê-lo. E não nos podemos esquecer, a realidade consegue ser ainda mais tenebrosa, sádica e doentia que o próprio mundo de Westeros e Essos. Não temos dragões nem white walkers, mas continuam cá os usurpadores, os degolados, os bastardos e traidores. Mas não se esqueçam, este artigo é negro e está cheio de spoilers.

A Guerra das Rosas / A Guerra dos Cinco Reis

game-of-thrones-pesn-lda-i-4762

George R.R. Martin admite ter-se inspirado bastante na Guerra das Rosas – de 1455 até 1487. Qualquer historiador e amante da série percebe esta óbvia influência de uma das partes fulcrais da História do trono inglês. Não há uma ligação de personagem a personagem, mas antes o clima e vários acontecimentos das duas guerras – a real e a ficcional – que fazem com que consigamos construir uma ponte que estabeleça quase um paralelo entre as duas.

A Guerra das Rosas foi uma guerra dinástica pelo trono de Inglaterra entre dois ramos da Casa Platagenet, o de Lancaster e o de York. As desavenças começaram quando o duque de York, Richard, começou por pôr em causa a legitimidade do então rei Henry VI. O rei era conhecido por ter problemas mentais, ataques de loucura e acabou assim por não ser muito amado pelos seus súbditos (o Mad King de Westeros?). O plano de Richard seria esperar que o enfermo rei morresse sem deixar herdeiros e isso deixaria-o como a segunda figura na linha de sucessão ao trono. Mas os planos mudaram quando o rei garantiu sucessão ao produzir um herdeiro.

Com voltas e reviravoltas, o duque de York venceu batalhas, Henry VI foi capturado, o duque foi promovido a protector do reino e reconhecido na descendência ao trono, a rainha Margaret de Anjou recusou logo esta solução e começou a reunir exércitos, o duque acaba acusado de traição, o rei perde o trono graças à derrota dos Lancaster nas mãos dos York que contavam com o apoio de Warwick, os reis reúnem forças no norte de Inglaterra, Richard de York morre na batalha de Wakefield, a rainha Margaret manda decapitar o corpo e espetar a cabeça do duque nos portões da cidade de York, o herdeiro da Casa York é Edward IV e promete vingar o pai. O novo duque de York esmaga as tropas reais na batalha de Towton e torna-se ele rei de Inglaterra. Isto faz lembrar alguém? Em tempos Eddard Stark também tentou deslegitimar um herdeiro ao trono – Joffrey, por ser fruto da relação incestuosa entre Cersei e Jaime Lannister – e, por isso mesmo, também ele foi acusado de traição e decapitado na capital do reino. Entretanto Robb, a Norte, em Winterfell, promete vingar o pai, reúne vassalos, auto-proclama-se rei do Norte e marcha para a capital (muito em semelhança a Edward IV, mas um acabou morto antes de se sentar em que trono fosse).

bosworth

Entretanto Edward IV é derrotado pelas tropas de Henry VI, que se torna – por pouco tempo – novamente rei de Inglaterra. As tropas de Lancaster são novamente derrotas e Edward IV é reposto novamente no trono. Ele morre e deixa como herdeiro Edward V, de doze anos. Por ainda ser menor, o conselho elege Richard, duque de Gloucester, como regente do trono. Gloucester – um duque claramente ambicioso – declara a sua intenção de ocupar o trono inglês. O pequeno rei, Edward V, e o seu irmão mais novo, são declarados herdeiros ilegítimos e são enviados para a Torre de Londres. Gloucester sobe ao trono como Richard III. Estas trocas e baldrocas são bastante características da própria política de Westeros. Se bem se lembram também tínhamos – depois da morte de Robert Baratheon – vários pretendentes ao trono. O falso rei, Joffrey, o rei legítimo, Stannis, o rei por capricho, Renly, o rei das Ilhas de Ferro, Baelon Greyjoy, e o rei do norte, Robb Stark. E tal como na realidade, na ficção o mundo não é justo e raramente vemos os que têm direito e razão a vingar, tanto Stannis como Edward V.

Finalmente o paralelo acaba numa incerteza, mas talvez com uma semelhança que ainda poderá concretizar-se. Será Daenerys Targaryen o rei Henry VII da Casa Tudor? Henry VII encontrava-se exilado em França, graças a perseguições do rei Richard III, mas ao aliar-se a algumas casas poderosas da nobreza inglesa e ao contratar mercenários franceses, Henry VII desembarca em Inglaterra com uma coligação que esmaga as forças de Richard III na batalha de Bosworth Field. Richard III morre em batalha e Henry VII sobe ao trono, funda a dinastia Tudor e coloca um ponto final nesta guerra ao juntar as duas casas, casando-se com Elizabeth York, filha de Edward IV. O símbolo dos Tudor ora em diante ficou a ser a junção de duas rosas, a vermelha dos Lancaster e a branca dos York. Posto isto, as semelhanças com Dany são extremamente fáceis de detectar. Será que os testemunhos da história mundial nos conseguem revelar o desfecho de Game of Thrones? Será Dany a rainha que poderá colocar um ponto final nas guerras dos sete reinos? É esperar para ver.

2000px-Roses-York_victory.svg

A realidade e a ficção podem andar de mãos dadas e Game of Thrones é a prova disso mesmo. A história pode ser uma disciplina tão interessante quanto todas as outras, as pessoas têm só de perceber que “quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo”. Esperemos que esta série desperte um maior interesse no público para uma parte importante de nós enquanto Humanidade, que nos faça recordar que, por mais sádica que possa ser uma cena de GoT, a realidade foi, e é, três vezes mais retorcida.

* Por opção do autor, este artigo foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1945