Dirão muitos que Manoel de Oliveira foi um realizador aclamado. Não o foi sempre no seu país. Responsáveis políticos fazem agora procissão nas televisões, evocando o realizador de Aniki Bóbó, os mesmos homens que arrasaram o investimento público na cultura e no cinema, os necrófagos da obra alheia, que usam a morte do homem que é sinónimo de Cinema para seu proveito.
Manoel de Oliveira, reconhecido e celebrado em todo o mundo, o mais velho realizador de sempre em actividade, nasceu antes da república, em 1908. Antes do cinema dedicou-se ao atletismo, tornando-se campeão nacional de salto à vara, ao automobilismo, outra das suas paixões, e à vida boémia no Norte, centrada sempre na cosmopolita cidade do Porto.
O jovem cinéfilo não poderia saber que teria tanto a dar ao cinema, e ao longo de tanto tempo. Na hora da sua morte, o desafio é fazer justiça à sua vida e ao seu trabalho. Ignorar nesta hora as dificuldades que enfrentou num Portugal que não o soube reconhecer é minorar o mérito de um homem que ultrapassou as fronteiras de um país que muitas vezes o deu como acabado.
Manoel de Oliveira filmou o norte, filmou Portugal, filmou muitas vezes a sua terra e a sua gente, e fê-lo com uma honestidade admirável, algo que incomodou uma sociedade atrasada como poucas, que não tinha a capacidade de se ver ao espelho, de ver a sua natureza colocada à sua frente, e que não se conseguia rir de si própria. E foi precisamente no documentário que iniciou a sua carreira, com Douro, Fauna Fluvial, apresentado no V Congresso Internacional da Crítica, que mereceu o elogio estrangeiro e a crítica nacional, que o acusa de mostrar o povo português na sua condição pobre e desfavorecida aos estrangeiros que lá se encontravam. Aniki Bóbó, a história das crianças de classe social inferior na cidade do Porto, e sua primeira longa-metragem, estreou em 1942 e foi um desastre de bilheteira, merecendo agora uma aclamação que, ainda que inteiramente justa, oblitera por omissão as restantes obras do realizador, menos conhecidas por muitos dos que lembram agora um realizador que esteve em actividade até aos seus 105 anos.
Esta injustiça de que falo não foi generalizada. Embora seja possível dizer que em muitos momentos Manoel de Oliveira foi melhor compreendido no estrangeiro do que em Portugal, houve muitos que sempre admiraram a obra do realizador português. E, numa obra que marcou um século inteiro, houve momentos e obras em que o mérito do realizador foi reconhecido pelo público, como em Francisca e em ‘Non’, ou a Vã Glória de Mandar, ambas podendo ser considerados sucessos de bilheteira. Este desacerto histórico, que o futuro irá certamente tratar de corrigir na totalidade, é mais trágico apenas porque o realizador nortenho foi sempre um cineasta ligado profundamente a Portugal e à sua cultura, visitando os nossos mais importantes autores nos seus filmes.
O Passado e o Presente (1971), primeira obra saída da cooperativa Centro Português do Cinema, é o verdadeiro retorno do realizador à realização, brincando e caracterizando de forma desafiadora uma burguesia que reage contra a teatralidade do filme. Estava destinado a ser um filme polémico. Amor de Perdição (1979), que adapta Camilo Castelo Branco, palavra por palavra, é obra difícil, exibida primeiro em episódios na RTP, merecendo das mais violentas críticas de sempre do cinema em Portugal. Tal seria legítimo, não fosse a obra ter sido aclamada no estrangeiro, voltando depois a Portugal para uma aclamação de alguns dos que a tinham mais violentamente atacado.
Vale Abraão (1993), uma Madame Bovary moderna, adaptado da novela de Agustina Bessa-Luís, é um filme fundamental na obra de Oliveira. A personagem magnética de Ema (Leonor Silveira, aliás, actriz central na obra do realizador) é notável ao transmitir a sensualidade misteriosa e absoluta, rápida a entrar e sair de cena. O acompanhamento pela Sonata ao Luar de Beethoven é ainda de referência obrigatória.
Já depois dos 100 anos, Manoel de Oliveira realiza quatro longas-metragens, e após aquele que quase duas décadas atrás fora considerado o seu filme-testamento, ‘Non’, ou a Vã Glória de Mandar, surge O Gebo e a Sombra (2012), Raúl Brandão adaptado ao cinema numa firme crítica ao mundo controlado pelo dinheiro, que em nome dele desrespeita e desonra tudo o que foi construído no passado. Um filme em analogia ao zeitgeist de um Portugal e de uma Europa atuais, e que conta com Michael Lonsdale, Claudia Cardinale e Jeanne Moreau, para além de algumas das suas obrigatórias referências portuguesas.
O homem-cinema português nunca deixou que o tempo consumisse o seu génio, assistiu e participou na criação e na decadência de géneros, de temas, de um século inteiro. Do mundo ao sonoro, à côr, passou por todo o cinema. Realizador polémico, representou o real tanto de forma crua como com a analogia mais elaborada e teatral. 106 anos depois, rompeu com a relutância da crítica nacional, e colheu um reconhecimento internacional notável. Manoel de Oliveira merece ser celebrado em Portugal por mais do que a sua idade, merece ser visto e revisto, explorado, estudado. O homem morreu, que desta perda possa surgir um verdadeiro conhecimento da sua obra, e que um país consiga compreender um dos seus maiores criadores.