Em entrevista ao Espalha-Factos, Daniel Cardoso já tinha anunciado: “A peça é bastante pesada.” De facto, Rights revelou-se intensa e penetrante. Mas só poderia ser assim: a fragilidade dos temas não pedia outro tratamento em palco.
Rights dividiu-se em duas partes. A primeira intitulou-se de Article 160º e foi coreografada pelo norte-americano Donald Byrd. A segunda peça já havia sido estreada em junho, no Festival Cistermú em Alcobaça. Aristides é uma criação de Daniel Cardoso. Embora entrelaçados por uma mesma década, as duas peças mostraram movimentos e conceitos díspares.
O tráfico de seres humanos foi o tema de Article 160º. Donald Byrd mostrou claramente uma das suas maiores preocupações no seu trabalho: a dança como instrumento social e cívico. Em Article 160º, o instrumento foi a “exploração” do corpo. Quando se fala em dança e num tema como o tráfico humano, tudo isto parece óbvio, mas a peça de Donald Byrd foi corajosa. Depois da leitura do artigo 160, onde os bailarinos fizeram movimentos muito clássicos e num ambiente com muito ritmo, parecendo até um clube noturno, os corpos foram mostrados ao público.
Em primeiro plano no palco, um foco serviu de montra aos corpos dos bailarinos. Daniel Cardoso encarnou a pele de um traficante e tornou os corpos dos bailarinos submissos às suas ordens implacáveis. O momento mais intimidador de Article 160º foi a entrada de uma bailarina com uma boneca colada ao seu corpo. A boneca representou o tráfico de crianças. Daniel Cardoso demonstrou uma carga dramática que acrescentou muita autenticidade e peculiaridade à ação. Aliás, um dos momentos mais elucidativos da peça foi quando o próprio se dirigiu ao público e o alertou: estava a vender o corpo de qualquer um.
O tráfico de seres humanos tem acompanhado a História da Humanidade. A escravatura, a prostituição, a exploração no trabalho não são problemas que ficaram parados na História, continuam e todos sabemos que existem. Donald Byrd e a Quorum Ballet cumpriram o principal objetivo: causar impacto através da dança.
Aristides assemelhou-se claramente ao trabalho habitual da companhia. Tendo como ponto de partida a personalidade de Aristides de Sousa Mendes, explorou a cedência de vistos do Consul de Bordéus aos judeus. Daniel Cardoso foi o responsável pela coreografia, desenho de luz, espaço cénico e figurinos. Na verdade, estes quatro elementos estiveram em sintonia e fizeram-nos viajar no tempo.
Ao longo de toda a peça foram caindo folhas de papel no palco. Obviamente representavam os vistos. Mas mais significativo foram os movimentos conjugados com a banda sonora composta por Olafur Arnalds, Max Richter e Afex Twin. Mais fluídos ou mais marcados, pode-se destacar o bailarino Elson Ferreira, que marcou através de movimentos intermitentes a incerteza da vida e da morte em que os judeus viviam. Ao longo da peça, os bailarinos também se vestiram de Aristides e representaram o peso da sua decisão. Uma opção que marcaria a vida de milhares de judeus. Aliás, esta representação foi um dos símbolos mais fortes da peça, que acumulou dois sentimentos tão próximos e contrastantes: o medo e a esperança.
Rights mostrou que o palco é um bom local para se debaterem temas controversos. O dramatismo dos temas explorados e a qualidade de movimentos da companhia foi mais um contributo significativo para o seu repertório e para a importância dos Direitos Humanos. São necessários trabalhos assim!
Fotografias Quorum Ballet