Quatro anos depois de A Bela e o Paparazzo, o realizador António-Pedro Vasconcelos regressa com uma comédia dramática protagonizada por uma dupla (aparentemente) improvável. Um filme simples, sobre problemas contemporâneos, que não se perde em excessivos simplismos. Uma proposta interessante que pode ser vista, a partir de hoje, nas salas portuguesas.
A história de uma amizade que nos dizem ser improvável – e que de facto é, tendo em conta a conjuntura do país. Um rapaz chamado Jó (João Jesus) é expulso de casa pelo pai no dia em que faz dezoito anos. Sem saber o que fazer, acaba por se refugiar no terraço do prédio onde mora Rosa (Maria do Céu Guerra), uma mulher que tenta enfrentar a vida depois da morte do marido. Criam-se laços entre ambos num país em constantes convulsões, onde as soluções para os problemas são inexistentes, tal como extinta já está declarada a esperança num futuro melhor.
“Quem diria que ia ser amor à primeira vista?” é parte do slogan promocional desta nova comédia dramática (ou será mais um drama com alguns tons de graça?) que nos chega hoje às salas, numa história de António-Pedro Vasconcelos e Tiago R. Santos. Mas tal como o filme nos mostra, e as variadíssimas entrevistas que o realizador tem feito nas últimas semanas, a história que rodeia os dois protagonistas consegue ser um pouco mais do que uma recriação fácil de um cliché cinematográfico que todos nós já vimos antes (não ambicionando, por isso, centrar-se nessa ideia que tanto está a ser publicitada). O trailer fala por si, e os diálogos que nele ouvimos também: esta é uma trama de emoções narrativas, mas acima de tudo um relato humano que tenta captar algum do espírito deste Portugal desesperado.
E é por isso que Os Gatos Não Têm Vertigens consegue ir mais além do que aquilo que parece prometer. As más línguas podem apontar o que quiserem na feitura do filme, na construção da história ou na sua mise-en-scène, mas não há dúvida que, para além de ser um interessante filme “comercial” (conceito do demo que provoca arrepios precipitados em muito boa gente), este é também um exemplo de storytelling com toques mainstream e convencionais – mas um convencionalismo com alguma originalidade e que, sejamos sinceros, consegue ser agradável.
O debate sobre a importância do cinema comercial em Portugal vai longo (no Paleolítico já nem era considerado novidade), monótono e desinteressante, com uma troca aparentemente eterna de galhardetes entre aqueles que o desprezam e os que o consideram a essência do mercado nacional. Não querendo tomar nenhuma posição extrema nessa feroz batalha inescrupulosa, que envolve também o duelo entre “o que pode ser visto” e “o que não pode” (hum, sente-se algo de ditatorial nestas expressões, não é?), talvez seja importante assinalar isto: fossem todos os filmes portugueses mainstream como Os Gatos Não Têm Vertigens e esse tipo de filmes poderia ser feito de outras formas, mais apelativas e conseguidas. Sim, porque este garoto ainda acredita que há uma grande diferença entre o comercialismo de um filme de António-Pedro Vasconcelos e o comercialismo de um Sei Lá.
Não vale a pena confundir coisas, porque as diferenças são notórias: a paixão do realizador pelo cinema é evidente (mas essa cinefilia em pouco auxilia a narrativa – e isso é necessariamente mau?) num filme que não tem rasgos de genialidade (era preciso?) ou uma qualquer grande inovação para o panorama artístico nacional (e isto? Também era indispensável?). Mas tem um ou outro pormenor delicioso que faz com que se destaque. Um deles é a maneira utilizada para mostrar o começo inevitável da narrativa: um notável plano-sequência, que acaba por dar um aspeto muito mais revelador a uma série de situações que são encadeadas da maneira mais previsível possível.
De previsibilidade se fala, também, em todo o resto da história. Serão poucos os que não conseguirão adivinhar, a cada cena, o desenrolar dos acontecimentos que viverão Jó e Rosa (e já que falamos de Rosa, convém não esquecer que a grande surpresa do filme, claro está, é a impecável Maria do Céu Guerra). Mas o entretenimento (outra palavra execravelmente diabólica nesta nossa linda terra) está conseguido de uma forma que nos faz interessar, ainda assim, pela história do princípio ao fim. Nem todas as estreias de cinema podem ser candidatas à maior obra prima do mundo, ou à aclamação da cinefilia. Não, há espaço para filmes com objetivos já usados, e abusados. Mas há que distinguir aqueles que fazem o bom e o mau trabalho dentro destas circunstâncias tão precisas de se fazer cinema.
Se este fosse um produto de rotina da indústria americana, não estariam em questão problemas tão próprios e recorrentes que povoam a nossa opinião pública, e esta crítica teria seguido um fio condutor mais regular. Mas minhas senhoras e meus senhores, teve de ser. Porque entre tanta historinha dos states para fazer chorar as pedras da calçada, a de Os Gatos Não Têm Vertigens consegue ser melhor do que a maioria delas, vencendo na humildade e sentido crítico do seu conjunto. Os propósitos comerciais são idênticos aos dos filmes desse outro país. São totalmente concretizáveis em Portugal? Não. Vão “ajudar” a nossa economia, ou destruir o planeta? Não. Mas podem existir e conseguirem ser o melhor possível, tendo em conta os seus recursos? Com certeza.
Os Gatos Não Têm Vertigens alerta-nos, com sensibilidade, para a crise que tão bem conhecemos, com personagens que, tal como nós, se encontram à beira do abismo, num país que não quer ser para velhos ou novos. Possui “horripilantes” e “indignas” pretensões comerciais. Mas este é um filme com algo para contar. E talvez seja isso o fundamental. Acontece assim, pelo menos, em todos os outros países do mundo.
7.5/10
Ficha Técnica:
Título: Os Gatos Não Têm Vertigens
Realizador: António-Pedro Vasconcelos
Argumento: Tiago R. Santos e António-Pedro Vasconcelos
Elenco: Maria do Céu Guerra, João Jesus, Nicolau Breyner, Ricardo Carriço, Fernanda Serrano
Género: Comédia, Drama
Duração: 124 minutos