O Espalha-Factos terminou. Sabe mais aqui.

Artistas Contemporâneos: Maurizio Cattelan e o sadismo irónico da crítica social

Este mês o Espalha-Factos apresenta-te a rubrica “Artistas Contemporâneos”. Desde o surrealismo à  arte conceptual, passando pela arte multimédia e até pela land art, damos-te a conhecer artistas cujo trabalho te irá certamente fascinar.

Maurizio Cattelan é uma personalidade altamente controversa. Caracterizado múltiplas vezes como sendo o “bobo da corte” do mundo da arte, esta alcunha foca não só o seu gosto pelo absurdo e irreverente, mas também a sua profunda interrogação acerca de normas socialmente enraizadas e hierarquizadas. A sua obra transborda humor negro que se dirige a vários sistemas organizacionais, sejam eles maneirismos sociais, questões políticas e religiosas ou o próprio universo artístico actual. Assim, o seu trabalho procura realçar a natureza incongruente do mundo e as intervenção que a humanidade sobre ele exerce, utilizando frequentemente temas do passado para fazer passar a sua mensagem. 

Cattelan não vê qualquer razão para a arte contemporânea ser excluída do holofote crítico que ilumina outras áreas da vida, procurando atrair atenção para a sua obra através de um autêntico manipular de emoções humanas que reside no factor “choque”. Esta técnica é executada de forma directa e agressiva, sendo que e  o seu trabalho é inúmeras vezes baseado em trocadilhos simples ou clichés subvertidos, um detalhe visível quando este substitui animais por pessoas em certas esculturas. 

Com uma obra presente em várias das mais importantes colecções públicas e privadas a nível mundial (Solomon R. Guggenheim Museum em Nova Iorque, Fondation Pinault em Paris ou Fondazione Sandretto Re Rebaudengo, em Turim, entre muitas outras), é possível concluir que este conseguiu realmente aquilo que pretendia: dar que falar. 

Recuando no tempo, Cattelan nasceu em Pádua (Itália) em 1960. Não possui qualquer treino ou estudos no meio das artes e considera-se um “trabalhador artístico” e não um artista.

No início da sua carreira, Maurizio escolheu figuras do mundo da arte como alvos principais das suas flechas destiladas de sarcasmo. Em Errotin, le vrai Lapin (1995)  chegou mesmo a convencer o galerista e mulherengo Emmanuel Lapin a vestir um fato de coelho rosa cuja forma se assemelhava a um falo para a abertura da sua galeria. Já no ano de 1996, com Another Fucking Readymade, roubou o conteúdo inteiro patente na exposição de outro artista e expôs a mesma afirmando ser da sua autoria, até a policia ter insistido para este devolver as obras sob ameaça de detenção.

Deste modo, o artista possui um verdadeiro dom para unir o humor e o macabro. Um exemplo disso mesmo são as suas instalações de animais embalsamados. As criaturas são configuradas em narrativas absurdas e cenários desconfortavelmente familiares como é o caso de  Bidibidobidiboo (1996) que apresenta um esquilo pós-suicida. O animal, sentado numa cadeira e caído sobre uma mesa, tem a seus pés uma pistola que terá utilizado para cometer suicídio.

De facto, ninguém consegue fugir à crítica acesa de Cattelan. ELa Nona Ora (1999), uma das suas obras mais célebres, é possível observar uma réplica em cera do Papa João Paulo II a ser atingido por um meteoro, sob um tapete vermelho. Exibida na Royal Academy em Londres como parte do prestigioso Apocalypse show, a escultura foi vendida por 886,000 dólares na Christie‘s.

Him (2001) consiste numa pequena escultura que se assemelha a um jovem estudante a rezar ajoelhado e pretende criar, tão ao gosto de Maurizio, um efeito de choque ao descobrirmos que este é na verdade Adolph Hitler. Para criar esta reacção de espanto, a peça é exibida no final de um longo corredor, de costas para os espectadores, concebida de modo a que estes só consigam reconhecer as feições realistas de Hitler quando se aproximem o suficiente.

Ainda na série de esculturas realistas, o artista utilizou repetidamente a sua própria imagem em obras de troça-pessoal e auto-anulação. Também em 2001, Untitled, uma instalação criada para o Museum Boijmans Van Beuningen em Roterdão, apresenta o mesmo a espreitar com uma expressão intrigante de um buraco na galeria.

No ano de 2007, Ave Maria revela uma linha de braços que se prolonga numa parede a realizar a saudação nazi referindo-se ao terrível fervor que levou ao Holocausto. 

No mesmo ano, a mais respeitosa e pesarosa peça All apresenta uma série de esculturas de mármore que se assemelham a cadáveres cobertos com lençóis e se estendem ao longo do chão de uma galeria, criando uma aura negra.

Em 2010 Maurizio fundou a revista de fotografia Toilet paper juntamente com Pierpaolo Ferrari e sob a direcção artística de Micol Talso. Desde a sua primeira edição a Junho de 2010 que a publicação conseguiu criar um mundo que apresenta narrativas ambíguas marcadas por traços de uma imaginação perturbadora. Nos últimos três anos, as fotografias publicadas na revista foram aplicadas a toda uma variedade de produtos e exploradas pelos media, contribuindo para uma multiplicidade de possibilidades que fazem com que as mesmas vivam para além das páginas onde foram impressas.

Apesar de ter anunciado a sua “reforma” do universo artístico no Guggenheim Museum em 2011, Maurizio continua bastante activo e a participar em inúmeros projectos. 

Descrito por Jonathan P. Binstock, curador de arte contemporânea no Corcoran Gallery of Art, como sendo “um dos grandes artistas pos-duchampianos, Maurizio Cattelan é um artista morbidamente fascinante. O modo como ironiza sem medos ou barreiras faz com que este se afirme como um agente de transição. Relevante ou não, quando interrogado acerca do que mais o fascina, o Céu, o Inferno ou o Purgatório, Cattelan escolhe este último exactamente pelo seu cariz transitório: “Existe vida para além do Purgatório, quer seja para o melhor ou para o pior. Parece-me a condição mais interessante.” E assim é também a sua arte, uma encruzilhada, um limbo onde se encontra alguém que quer fazer a diferença e realizar mudanças mas que no fundo não sabe bem onde chegar, que se fica pela viagem.

*Este artigo foi escrito, por opção da autora, segundo as normas do acordo ortográfico de 1945