A rubrica A Recordar, iniciada em 2012, está de volta ao Espalha-Factos. Vamos voltar a relembrar atores e atrizes que tenham marcado a sua época, mas que caíram em esquecimento ou não foram suficientemente reconhecidos. Percorreremos atores de diversas décadas, até à atualidade. Falaremos da sua vida, carreira, papéis mais icónicos e do legado que deixaram.
Muitos atores veem a sua fama brotar de um filme específico ou até mesmo de um género cinematográfico em particular. Janet Leigh é diferente. Não questionando a longa e benemérita carreira desta atriz, é quase impossível dissociá-la de uma só cena de 45 segundos. Ainda assim, Leigh foi abençoada: essa cena é uma das mais influentes da história do cinema, a famosa “cena do chuveiro”, do filme Psico, arquitetada pelo pai do suspense, Alfred Hitchcock. Mas, quem era realmente a mulher por detrás da cortina?
Foi há 54 anos que Janet Leigh apareceu no grande ecrã como Marion Crane, a desconfortante protagonista de Psico. Hitchcock apresenta um profuso reportório de filmes que podem ser objetivamente considerados obras-primas. Contudo, torna-se quase indiscutível que nenhum supera Psico. Neste filme, os cânones do cinema e da sociedade da altura são rompidos, com uma combinação-mestre de terror, inovação e, acima de tudo, técnica. Num teste à paciência dos censores de 1960, Hitchcock mostra, pela primeira vez, no cinema americano, uma sanita em plano fechado, algo que era considerado demasiado grosseiro. O mestre do suspense ainda foi mais longe: a estrela de Psico – Janet Leigh – aparece várias vezes em roupa interior e conhece um destino fatal apenas meia hora depois do início do filme, o que fugia à tradicional narrativa cinematográfica daquela época.
Leigh é então Marion Crane, uma mulher anjo-demónio, que tem um caso com Sam Loomis (John Gavin). Um dia, quando o patrão lhe pede para depositar 40 000 $ no banco, Marion mostra o seu lado mais negro e foge com o dinheiro para ir ter com Sam. A meio do caminho, a personagem vê os seus planos alterados por uma tempestade torrencial e para no motel de Norman Bates (Anthony Perkins). Percebendo o erro que tinha cometido, Crane decide voltar para casa na manhã seguinte. Mas, naquela noite, ela toma o duche mais inesquecível da história do cinema.
Numa cena que durou sete dias a gravar, mas que se resume a 45 segundos de um enlace perfeito entre técnica e terror, morre a indefesa Marion Crane e nasce a estrela Janet Leigh, uma atriz talentosa que viu a carreira e a vida pessoal imortalizadas pela tão célebre “cena do chuveiro”. Como a própria contou várias vezes, nunca mais foi capaz de tomar duches – “Parei de tomar duches, tomo banhos, apenas banhos. Certifico-me de que as janelas e portas da casa estão fechadas. E deixo a porta da casa-de-banho e a cortina da banheira abertas. Estou sempre a olhar directamente para a porta“.
Contudo, mantemos a nossa premissa: Leigh foi mais do que a protagonista de uma das cenas mais emblemáticas do cinema. Esta mulher de caracóis loiros, sobrancelhas arqueadas e peito robusto, merece destaque por uma carreira eclética e duradoura, que percorreu géneros como musicais, comédias, westerns e thrillers.
Filha única de Helen Lita e Frederick Robert Morrison, Janet nasceu Jeanette Helen Morrison, a 6 de julho de 1927, em Merced, na Califórnia. Para além de bonita, Leigh era uma jovem inteligente que terminou o liceu com apenas 15 anos e seguiu os estudos na Universidade do Pacífico, onde estudou Música e Psicologia. Este percurso aparentemente linear é interrompido quando, no inverno de 1945, a ainda Jeanette visita os pais na estância de ski Sugar Bowl, onde ambos trabalhavam, perto de Turkee, no norte da Califórnia. Tudo muda quando a atriz Norma Shearer, que passava férias na Sugar Bowl, repara numa fotografia da bela Janet Leigh, que o pai da jovem trazia contigo. Anos mais tarde, Shearer recordou que “aquele sorriso tornou aquele rosto no mais fascinante que eu alguma vez vira em muitos anos. Tinha de mostrar aquela cara a alguém do estúdio“. O estúdio era, nada mais, nada menos, do que a Metro-Goldwyn-Mayer.
Apesar de não ter nenhuma experiência na área da representação, Leigh rapidamente fechou contrato com a MGM. Estávamos no ano de 1947, quando Janet se estreia no filme de grande orçamento Reconciliação (The Romance of Rosy Ridge), de Roy Rowland, como Lisa Anne MacBean, o interesse romântico de Henry Carson (Van Johnson).
Por esta altura, e com apenas duas décadas de vida, Janet Leigh já contava com dois casamentos. O primeiro enlace deu-se quando Leigh tinha apenas 15 anos – fingiu ter 18 – com John Kenneth Carlisle, em Reno, Nevada, em agosto de 1942. Ao fim de quatro meses, a precoce união foi anulada. O segundo casamento aconteceu três anos depois, em 1945, com Stanley Reames, tendo acabado em divórcio, em setembro de 1949. Em 1951, Leigh casa-se com o terceiro marido, o ator Tony Curtis, de quem teve duas filhas, as também atrizes, Kelly e Jamie Lee Curtis. Esta última contou à More Magazine que o laço entre os pais se começou a deteriorar à medida que a carreira de ambos progredia. Durante algum tempo, o casal ainda mereceu a distinção de “o casal perfeito de Hollywood” e participou em cinco filmes, entre os quais, Houdini (1953), The O Escudo Negro (1954) e Os Vikings (1958). A relação mais longa de Leigh ainda estaria para vir.
Embora descrita como uma mulher simples, terra a terra e generosa, em 1948, Janet Leigh é considerada a “No. 1 glamor girl” de Hollywood, um título que combina com os sucessos do ano seguinte: o filme As Mulherzinhas, baseado no romance de Louisa May Alcott, e Quando as Viúvas Querem Casar, de Don Hartamn.
É durante os anos 50 que Leigh mostra a sua verdadeira veia camaleónica, percorrendo vários géneros cinematográficos. A futura estrela de Psico começa a brilhar em filmes tão distintos quanto a comédia Angels in the Outfield (1951) e o western Esporas de Aço (1953), de Anthony Mann. De regresso à comédia, em 1954, Leigh participa em Living It Up, num papel secundário. No ano seguinte, é a vez da comédia musical My Sister Eileen, de Richard Quine, em que Janet protagoniza a bela Eileen Sherwood. O feliz desempenho de Leigh neste rol de filmes começava a trilhar o caminho que levaria a atriz aos seus dois maiores êxitos: A Sede do Mal (1958) e Psico (1960).
Em A Sede do Mal, de Orson Welles, Leigh é Susie Vargas, a jovem esposa do chefe de polícia mexicano Mike Vargas (Charlton Heston). Quando Vargas se vê obrigado a investigar um homicídio, em plena lua de mel, fica sem saber o que fazer com a mulher. Mas, Susie, à semelhança de Janet, é uma mulher corajosa, independente e confiante, que tem brilho próprio. Neste filme de Welles, o ícone começa a desenhar-se.
E, depois chega Psico, o filme que imortaliza Leigh em pouco mais de meia hora. A obras das obras de Hitchcock vale à atriz um Globo de Ouro para Melhor Atriz Secundária e uma nomeação para o mesmo Oscar. Apesar dos rumores que surgem em torno de Hitch e da sua relação-obsessão com as celestiais protagonistas dos seus filmes, como Grace Kelly ou Tippi Hedren, Leigh fez questão de garantir que a relação com o realizador nunca tinha passado do nível estritamente profissional. Para esclarecer este e outros mistérios que rondam Psico, a atriz publicou o livro Psycho: Behind the Scenes of the Classic Thriller, em 1995.
Depois da escalada até Psico, a carreira de Leigh começou a desvanecer ao longo dos anos 60. Ainda participou noutros filmes, como O Enviado da Manchúria (1962), ao lado de Frank Sinatra, e em Bye Bye Birdie (1963), a adaptação de um êxito da Broadway. A partir daqui, a atriz recusou vários papéis, alegando que não queria ficar longe da família. Por esta altura, Leigh já era casada com o quarto e último marido, o corretor da bolsa Robert Brandt, com quem esteve durante 42 anos.
O afastamento do grande ecrã deu lugar a participações como convidada em séries como The Man from U.N.C.L.E, em 1966, e em filmes televisivos como The House on Greenapple Road, em 1970. Mais tarde, Leigh aparece em dois filmes de terror com a filha Jamie Lee Curtis, O Nevoeiro, em 1980, e em Halloween H20: O Regresso (1998), com uma pequena presença. E assim se delineou o fim da carreira da estrela cadente de Psico.
O fim da atriz estava reservado para três de outubro de 2004, aos 77 anos, depois de sofrer durante um ano com vasculite, uma infeção nos vasos sanguíneos. Para trás, Leigh deixou um livro de memórias, There Really Was a Hollywood, publicado em 1984 e que se tornou um bestseller do New York Times.
O balanço é ingrato para Janet Leigh: participou em mais de 50 filmes, muitos deles verdadeiros sucessos; mas, para o grande público, o nome Leigh só lembra uma coisa – a “cena do chuveiro” de Hitchcock, aos som dos “violinos estridentes” de Bernard Herrmann. Se, por um lado, Psico fez de Janet Leigh um ícone instantâneo, por outro, trouxe-lhe o quase-desgosto de ver a carreira eclipsada por um único papel.