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Transcendence: A Nova Inteligência

Parecia ser um dos títulos mais promissores do Cinema de 2014, mas acabou por se revelar uma das grandes desilusões do ano, tornando-se mais um exuberante flop da produção de Hollywood. Transcendence fala de tecnologia e imortalidade, e estreia esta semana em Portugal.

Will Caster (Johnny Depp) é um cientista prestigiado no campo da Inteligência Artificial, tornando-se uma figura controversa graças às experiências que leva a cabo para criar uma máquina com vida própria, a partir do cérebro humano. Quando o seu projeto está à beira de ser concluído, Will é alvo de um atentado por um grupo terrorista anti-tecnologia, que o deixa gravemente ferido. Mas para não o deixar morrer, e comprovar a eficácia da invenção, a sua mulher, Evelyn (Rebecca Hall), decide transferir o seu cérebro para um supercomputador, o que faz com que Will ressuscite virtualmente. Contudo, o dilema instala-se, à medida que a máquina ganha cada vez mais poder e informação: será que é mesmo aquele homem que está dentro daquele computador, ou apenas o processador aproveitou-o para se desenvolver autonomamente?

Talvez a melhor forma de começar esta crítica passe por uma mensagem que tem de ser transmitida, urgentemente, a Johnny Depp: que se passa contigo rapaz? O que é que andas a fazer, hein? Volta para os projetos giros. Aqueles que fizeste há uns anos, e olha que nem foi assim há tanto tempo. Que me dizes? Vais fazer isso, sim? Vais? Se puderes, vais ver que não te custa nada, e impedes que a malta tenha de aturar filmes como o Transcendence. Não impeças a tua fraca visão de continuar a fazer-te envolver em projetos descartáveis, por favor. Há muita gente que ainda gosta de ti (e não estou a falar apenas das muitas senhoras que te veem como um sex symbol). Obrigado e um abraço!”

Agora, podemos iniciar verdadeiramente a análise: esta era uma história que poderia ter dado muito mais do que aquilo que nos é apresentado. O argumento, escrito por Jack Paglen, estava há algum tempo na “lista negra” dos scripts populares mas nunca produzidos na indústria de Hollywood, e se agora foi finalmente concretizado, consegue ficar muito abaixo daquilo que os grandiosos recursos financeiros da produção poderiam ter possibilitado. Começa por ter uma premissa relevante para a atualidade, captando os problemas constantes que a tecnologia impõe ao nosso quotidiano, tal como a questão “máquinas vs. robôs”, uma temática que já pode ser considerada clássica do próprio Cinema.

Foi mais uma vítima do elevado marketing do sistema publicitário do Cinema americano. Com ele, criaram-se, talvez, excessivas e injustificáveis expectativas em relação a Transcendence, mas neste caso, a ideia que nos dá o trailer não acabará por diferir significativamente daquilo que o filme é na sua integralidade. Em vez de ser uma abordagem nova às questões que afetam a sociedade ultra high-tech do século XXI, acaba por ser um festival de clichés que tanto tem de futurista e de original como qualquer um dos filmes de ficção científica parodiados em Mystery Science Theatre 3000.

OK, sejamos sinceros: Transcendence não é um filme assim tão mau para poder ser enquadrado na categoria das pérolas da mediocridade que foram (re)descobertas nesse programa de culto americano. Mas é um fracasso notável e um feito apenas razoável, que não se perdoa aos talentos que nele se envolveram, e que poderiam ter dado muito mais e melhor a esta história. E tudo começa nos diálogos das personagens, cheios de uma desinspiração angustiante e surpreendente – e que apenas em alguns breves momentos conseguem sobressair desta generalização.

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E Transcendence começa com algum interesse, com o discurso da personagem de Johnny Depp (e dos temas polémicos que analisa) que será, certamente, o momento mais fulgurante do filme. Precisamente porque não tem efeitos especiais nem cenas de ação despropositadas, como se sucede, a partir daí, numa catadupa de cenas que servem mais para encher chouriços (cuja qualidade é quase intragável) do que o apetite do espectador.

E há o cuidadozinho em não tornar nada incoerente, claro, visto que toda a história é tão fantasticamente complexa, e por causa dela, nenhum de nós consegue ser suficientemente esperto para descobrir que, por trás de uma camada aparentemente inteligente e profunda, se esconde todo um conteúdo superficial, banal e perfeitamente esquecível, apoiada numa capa de romantismo insípida e fracamente trabalhada. O filme acaba por ser inconsistente porque procura não ser inconsistente, esquecendo-se, contudo, que há coisas muito mais simples do que o espetáculo megalómano do CGI que são necessárias para tornar uma fita apetecível e sedutora para o público.

O problema primordial de Transcendence está, por isso, no seu lado formal demasiado semelhante com milhentas outras coisas que já vimos antes, quer no Cinema, quer na TV. Quem realiza é Wally Pfister, estreante na área, que foi nomeado três vezes para o Oscar de melhor fotografia, graças a colaborações com Christopher Nolan, tendo conquistado a estatueta em 2011, com o magnífico trabalho visual de A Origem. E é aí que encontramos outra das maiores falhas do filme: parece querer ser uma obra de Nolan, mas apenas copia as características que tornaram únicas essas películas, e que criaram o estilo que caracteriza esse cineasta (um dos produtores executivos de Transcendence). Falta um espírito próprio, algo que o possa destacar dos demais. Ah, e essa realização apenas tarefeira e copiada de tantas outras mentes brilhantes do Cinema não deixa, também, de atormentar a cinefilia de cada um de nós.

Mas ao pesar tudo na balança, e depois de se ter feito toda a síntese dos pontos fracos de Transcendence, há que realçar as coisas boas, que podem ser poucas, mas ajudam a elevar um pouquinho a mediocridade existente, até porque o filme não é desagradável, de todo: os atores sabem cumprir o que o argumento pede, e mesmo que pareçam desconfortáveis com a demasiada tecnologia que os envolve, têm interpretações mais destacáveis do que as palavras que têm de proferir. Há uma questão importante, que tende a ser esquecida, mas tem de ser valorizada: o filme, numa pequena parte da sua plot, especula como seria um mundo sem Internet, e consegue recriar um hipotético caos que não deixa de ser assustador.

E tal como na utilização dessa temática, na abordagem de outros temas delicados da contemporaneidade (mesmo que seja de forma muito fragilizada), não conseguimos deixar de pensar, afinal, no que poderia acontecer na realidade, se fôssemos confrontados com problemas semelhantes. Há que prezar também todo o trabalho técnico, impecável e fenomenal. Esperemos é que Wally Pfister tenha aprendido que, num futuro próximo, não é só o aspeto bonitinho e perfeito que faz um filme ser realmente bom e inovador. Os computadores podem ser necessários para resolver os problemas da Humanidade, mas cuidado com o impacto que as suas tecnologias podem ter naquilo que pode mesmo ser considerado como Cinema!

Resumindo isto tudo: o filme pode não ser mau, mas não é por isso que não deixa de ser pouco recomendável. E no princípio de Transcendence, ouvimos Will Caster falar de várias questões, relacionadas com as maiores inquietações da Humanidade. Uma delas é “o que é a alma?”. E é pena que também o filme não perceba o que isso é, porque acaba por ser o que lhe faz mais falta.

6/10

Ficha Técnica:

Título: Transcendence

Realização: Wally Pfister

Argumento: Jack Paglen

Elenco: Johnny Depp, Rebecca Hall, Morgan Freeman, Paul Bettany

Género: Drama, Ficção Científica, Mistério

Duração: 119 minutos