O Espalha-Factos terminou. Sabe mais aqui.

Mozart Concert Arias: a pintura de um quadro vivo

Numa antecipação daquele que é, por excelência, o dia dedicado à dança, 29 de Abril, a coreógrafa Anne Teresa De Keersmaeker aliou-se, mais uma vez, à CNB (Companhia Nacional de Bailado) e aos músicos do Divino Sospiro para uma interpretação de Mozart Concert Arias, originalmente estreado em 1992, em Avignon. O espetáculo surge no contexto do planeamento anual da Companhia, dedicado, este ano, por excelência, à falecida poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen.

No passado domingo, 27 de Abril, pelas 16h, o Teatro Camões abriu portas à referida criação naquela que é reconhecida como a Tarde da Família . Apesar de não ter acolhido casa cheia, ainda antes das 16h o público presente desfolhou curiosamente os programas ao som de uma orquestra que desde logo se fez notar: situada abaixo do palco e consideravelmente próxima do público, Divino Sospiro agarrou a missão de se assumir presente na entrada de todo o público e, ainda que em processo de afinação e preparação dos instrumentos, deixou-se logo envolver por um elaborado e já ao descoberto cenário.

Em palco, sete cadeiras brancas de ferro e algo trabalhadas, se fizeram dispor em redor de uma estrutura elíptica e inclinada que se assemelhava ao chão de um clássico salão de dança. Iluminados por focos laterais e acompanhados da presença de um belíssimo Pianoforte, sete paralelepípedos de relva preenchiam o pano de fundo numa combinação ingenuamente primaveril.

Pouco depois da hora estipulada subiu a palco uma das três sopranos que excelentemente ocuparam a maior parte do espaço e tempo do espetáculo. Um Moto di Gioia fez as honras: perante a imponente presença e voz de uma das cantoras líricas, entrou um bailarino em palco que dissuadiu as ansiedades e correspondeu às expectativas ao revelar os prolegómenos das quase duas horas e meia que se seguiram.

Mozart Concert Areas

O palco foi berço para treze bailarinos: seis homens e sete mulheres que se deixaram guiar no seio da dedicada e sempre presente orquestra e nas cravadas e sonantes vozes de Eduarda Melo, Kamelia Kader e Carla Caramujo (sopranos). O espetáculo revelou-se eminentemente aberto, com base num princípio de constante troca, essencialmente emocional, numa triangulação de relações (bailarinos, músicos e público) que pareceu não ter fim. Assim, o conjunto de bailarinos, numa incessante interação com a música que se revelou um mapa de emoções, fez-se acompanhar de heterogéneas e fortes líricas cuja tradução rolou num ecrã paralelo.

Deixando-se reger ora por pulsões e impulsos num acaso desmedido, ora pela razão numa sedenta procura da verdade, os corpos que dividiram, ocuparam e abandonaram o palco assumiram-se de material flexível, dependente, submisso a algo maior. De um lado, os homens, periclitantes, atrevidos, galantes, num movimento saltado e imponente, de traje real e comportamento desmedido e despreocupado numa atitude de aliciação da vida, por outro, as mulheres, chorosas, repletas de dor, de incerteza, de vaidade e de angústia, de medo e receio revelaram-se através de movimentos densos, em baixos níveis deixando-se interromper por súbitos ataques, contradições e desesperos.

Aquilo que numa primeira análise separou Homens e Mulheres, respetivas roupas, escolhas, preferências, formas de expressão e movimento, fundiu-se a certo momento num complexo e aceso jogo que, se por um lado recorreu ao absurdo, patético, e ao sublime humor quase sarcástico, por outro revelou a dor, a tragédia, a angústia, a vingança e, acima de tudo, a ausência: a separação de corpos, quer em vida, quer em morte.

Os elementos cénicos delimitaram um campo perfeito: ao longo de todo o tempo o palco revelou-se enquanto moldura que guardou em si um quadro em constante transformação, moldagem, apagamento e criação. Ao fazer-se preencher por criações coreográficas de uma simultaneidade inimaginável, numa base de extrema diversidade de guarda-roupa, ação, expressão e movimento, soltou-se uma plena criação de simetrias e transposições, trocas e substituições de corpos com raiz numa corrida incessante.

Revelou-se o poder dos simples efeitos visuais que se ocuparam dos sentidos do público. Por um lado, movimentos sistemáticos, definidos, que se inscreveram na precisão, na técnica, na repetição e coordenação. Por outro, a leveza, o classicismo de um ser que se explora de dentro para fora e recolhe de fora para dentro, culminou em dengosos alongamentos, passadas delicadas e transferências demoradas.

Uma total exploração do tempo e do espaço obrigou a excelente utilização dos diferentes níveis num comportamento muitas vezes orgânico, animal e outras, elaborado, construído numa contemporaneidade devoradora tal qual diluente de emoções. Um trabalho que circundou o campo das ações/reações e causas/consequências através de explorações dramáticas e performativas, a solo, em pas de deux e em grupo no leito de um movimento contemporâneo.

Mozart Concert Areas

‘’Para mim a questão decisiva é sempre a mesma: Que movimentos para que música?’’, incidiu a criadora no texto de apresentação dos programas que corriam as mãos da plateia. Dentro do vasto trabalho de recomposição que o espetáculo exigiu (desde logo na escolha das árias de Mozart), Anne Teresa de Keersmaeker fez sublinhar a questão do sentido, de uma possível interpretação: A Un moto di gioia, Ah, lo previdi, Ch’io mi scordio di te?, Alma grande e nobil core ou Vado, ma dove? Aliaram-se algumas peças instrumentais que, na sua totalidade, se afirmaram como guião, obrigando a uma atividade interpretativa na sequência da presença de uma linguagem corporal enquanto resposta à música mas também de um discurso musical enquanto incidente para o movimento.

Apesar de longo, de caráter sistemático e, portanto, muitas vezes repetitivo, o carimbo primaveril e renovado não se deixou apagar na grande maioria das coreografias que se assumiram enquanto movimentos de exteriorização de dialéticas muito pessoais e diversificadas.

Um concerto, um espetáculo de dança, uma peça de teatro, uma pintura. Na verdade, difícil será definir de modos curtos toda a obra. A presença do descontínuo no seio do contínuo e o trabalho em torno de dicotomias paradoxais revelaram uma enorme tela que de tão viva, heterogénea, emocional e intemporal se tornou quadro. Um quadro vivo.

Após ter estreado na passada quinta-feira no Teatro Camões, em Lisboa, Mozart Concert Arias estará em palco até 10 de Maio.