A fechar a sétima edição da Festa do Cinema Italiano por Lisboa, foi programada a estreia da versão em 3D de O Último Imperador, numa sessão apresentada pelo diretor de fotografia Vittorio Storaro. Durante o dia, decorreram ainda reposições de alguns dos títulos que marcaram o certame, e à noite foram revelados os vencedores da secção Competitiva, culminando o festival com a projeção do aclamado filme O Capital Humano.
O júri, composto por Lorenzo Codelli, Jean-Paul Bucchieri e Camané, atribuiu o prémio de Melhor Filme em Competição a duas obras ex-aequo, elogiadas pela sua originalidade e qualidade. Foram elas The Special Need, de Carlo Zoratti e Cosimo Bizzarri, e A Máfia só mata no verão (La Mafia uccide solo d’estate), realizado por Pierfrancesco Diliberto (mais conhecido como Pif). Já o prémio Canais TVCine, votado pelo público que visionou os filmes da Festa do Cinema Italiano, foi entregue ao filme Zoran, o meu sobrinho herdado (Zoran, Il Mio Nipote Scemo), uma comédia realizada por Matteo Oleotto. Por fim, foi ainda atribuído, pela primeira vez, um Prémio Carreira, entregue a Vittorio Storaro em homenagem ao seu extenso e aclamado trabalho artístico, e pelo contributo que deu para a melhor compreensão da Arte da Cinematografia (ou fotografia para Cinema).
O Último Imperador (The Last Emperor) – Bernardo Bertolucci [1987] – 10/10
É um dos títulos mais conhecidos do realizador de O Conformista e O Último Tango em Paris, mas infelizmente, não se trata de um dos mais celebrados da sua filmografia. Apesar disso, esta obra-prima sobre a vida de Pu Yi (John Lone), o último imperador da China, foi alvo de uma reconversão a três dimensões, exibida pela primeira vez no Festival de Cannes do ano passado (na secção Cannes Classics). E no último dia da Festa do Cinema Italiano chegou à Sala Manoel de Oliveira, numa sessão que demonstrou, mais uma vez, a enorme beleza das imagens deste filme, tão bem compostas por Vittorio Storaro (que antes da projeção iniciar, explicou pormenorizadamente o simbolismo de cada uma das cores utilizadas para O Último Imperador, representativas das várias fases da vida social e psicológica da personalidade e da época conturbada em que viveu), e magistralmente dirigidas por Bertolucci.
Foi um inesperado vencedor absoluto na cerimónia dos Prémios da Academia de 1988, onde arrecadou nove estatuetas, tantas como as nomeações para as quais estava indicado (que entre as quais se incluem Melhor Realizador, Melhor Fotografia, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Filme). Porquê a surpresa? Por O Último Imperador não se enquadrar exatamente no ideal mais regularmente defendido e premiado pelos Oscars. Trata-se de um épico histórico, sim, mas não segue os padrões ditados pelo Cinema americano. Tem a sua beleza própria e entra num mundo novo, desconhecido da maioria das pessoas, explorando os hábitos e costumes extravagantes e megalómanos praticados pelo sistema imperial chinês, na mítica Cidade Proibida (o filme foi o primeiro a filmar mesmo no local).
Depois de descobrir a versão em 3D do seu filme, Bernardo Bertolucci afirmou que, com ela, “as pessoas entram totalmente na Cidade Proibida“. Contudo, bem vistas as coisas, nada se altera em relação ao legado que o filme deixou na História do Cinema, e há apenas uma maior profundidade em relação aos elementos cénicos e aos movimentos das personagens, mas pouca ou nenhuma falta faz este acessório cinematográfico para se poder apreciar o longo épico dramático, sobre uma personagem invulgar metida num sistema decadente, ao qual acabará por estar condenado a partir do momento em que se torna imperador, com três anos de idade. A fotografia de Storaro continua belíssima, poética e intocável, proporcionando de novo a O Último Imperador o lugar para o qual foi pensado: o grande ecrã.
O reinado de Pu Yi acompanha as convulsões de uma China em constante mudança, incluindo a revolução política que se instalou no país e que acabou com o sistema secreto e luxuoso da Cidade Proibida. Acompanhamo-lo em diversos momentos da sua vida, onde o vemos crescer e apaixonar-se pela cultura e costumes ocidentais (mais abertos do que a pseudo-ditadura imperial, da qual não conseguirá escapar), rebelando-se contra os próprios dogmas preconceituosos que o coroaram, à medida que as paredes que o protegiam do resto do mundo começam a desabar, acabando por destruí-lo lentamente. Pu Yi torna-se nada mais do que um fantoche ao serviço dos seus falsos aliados, e com o passar dos tempos, imperador e império tornaram-se em simples peças museológicas, que qualquer um de nós pode observar com um olhar contemporâneo, que despreza as vidas humanas que foram postas em jogo naquela época.
Filme riquíssimo nas suas texturas e imagens (e nos sons – destaque-se aqui a banda sonora de Ryuichi Sakamoto que conta com a colaboração de vários artistas, entre os quais David Byrne), O Último Imperador não é só, contudo, um exercício de formidável estética e linguagem cinematográfica. Destaque-se, com todo o mérito, as interpretações de todo o elenco, com especial destaque para John Lone e o soberbo Peter O’ Toole, numa de muitas performances que foram completamente ignoradas pela Academia. Há também que fazer uma vénia a todo o trabalho de escrita, que engloba a ambição, o egocentrismo e a sede de poder que caracterizam muitos dos acontecimentos históricos que presenciamos, e que infelizmente, não são temáticas tão arcaicas como podemos supor, à partida. Por isso, este é um objeto cultural que deve ser reavaliado com outros olhos, quando muita gente na contemporaneidade tenta esquecer o valor simbólico e quase transcendental que emana esta narrativa tão bem realizada por Bernardo Bertolucci. Com ou sem 3D, continua um encanto de filme.
O Capital Humano (Il Capitale Umano) – Paolo Virzì [2013] – 9/10
A encerrar esta sétima edição do Festival, foi exibido um dos filmes mais falados da atualidade cultural italiana. E por agora, O Capital Humano é o único título exibido no certame que terá estreia comercial em Portugal – e ainda bem, porque vale mesmo a pena. Chegará a 15 de maio, e trata-se de um mosaico de tragicomédias humanas, urbanas e socioculturais, que muito deve aos cinismos e sarcasmos de Robert Altman (faz lembrar O Jogador e Gosford Park) e dos filmes mais negros e menos humorísticos de Woody Allen (reveja-se Crimes e Escapadelas, por exemplo).
O Capital Humano é uma história contada em várias perspetivas, sendo que cada uma nos dá mais pormenores sobre o drama central que se desenrola. No que parece ser apenas uma narrativa simples e objetiva, o filme de Paolo Virzì evolui à medida que descobrimos novos pontos de interesse nas personagens e nas suas pequenas histórias pessoais. Além de mostrar como tudo pode ser relativo (e como todas as pessoas têm algo a esconder, por trás da hipocrisia com que se mascaram no quotidiano), a obra filma a decadência do modo de vida italiano e do eterno confronto entre classes, onde alguns tentam ascender a lugares impossíveis, e outros tentam manter o seu status elevado no meio de uma concorrência económica e familiar feroz.
Cada personagem tem diferentes preocupações, e o filme sabe guiar-nos muito bem apenas por cada uma das três pessoas cujo percurso seguimos de uma maneira mais íntima e entusiasmante (são eles um pai com cegas e irracionais ambições sociais, uma mãe desiludida com a sua vida burguesa, e uma filha às voltas com um ex-namorado persistente e um novo amor que lhe surge – e não, as três figuras não fazem parte do mesmo núcleo familiar). E neste argumento extremamente bem escrito e interpretado, O Capital Humano questiona o valor do ser humano como a peça de um puzzle que nunca consegue ser totalmente resolvido, porque tem demasiadas camadas por desvendar. Uma das grandes surpresas da Festa do Cinema Italiano e, sem dúvida, um dos melhores filmes que vai chegar às salas em 2014.