A rubrica A Recordar, iniciada em 2012, está de volta ao Espalha-Factos. Vamos voltar a relembrar atores e atrizes que tenham marcado a sua época, mas que caíram em esquecimento ou não foram suficientemente reconhecidos. Percorreremos atores de diversas décadas, até à atualidade. Falaremos da sua vida, carreira, papéis mais icónicos e do legado que deixaram.
Nasceu em Pittsburgh, na Pensilvânia, a 23 de agosto de 1912, como Eugene Curran Kelly. Terceiro filho de uma família com ascendência maioritariamente irlandesa, começou a dar os primeiros passos nas artes logo aos oito anos de idade, quando a mãe o inscreveu em aulas de dança com James, o seu irmão mais velho. Eles não gostavam muito da experiência, visto que sofriam na pele os preconceitos da população e dos jovens da sua faixa etária. Kelly só voltaria a dançar aos 15 anos, por iniciativa própria, combinando os ensaios e a prática artística com a vida escolar, concluindo o ensino secundário na Peabody High School em 1929.
A seguir, Gene Kelly queria estudar jornalismo, mas este foi o ano do crash da Bolsa de Nova Iorque, que trouxe o início do caos financeiro e económico que provocaria enormes alterações no sistema dos EUA. Devido a este acontecimento inesperado, Kelly decidiu abandonar o seu sonho universitário para procurar emprego e conseguir ajudar a família, em dificuldades por causa da crise. O seu talento trouxe lucro, competindo em diversos concursos de talento locais (que atribuíam prémios monetários aos vencedores), e trabalhando em espetáculos de vários bares noturnos.
Em 1931, Kelly decide ir estudar Economia para a Universidade de Pittsburgh. Lá, ele junta-se ao Cap and Gown Club, uma associação que fazia produções teatrais originais, tanto musicais como humorísticas. Permaneceu no clube depois de terminar o curso, tornando-se o diretor de 1934 a 1938, enquanto estava, ao mesmo tempo, a estudar Direito. No princípio dos anos 30 a sua família criou um estúdio de dança, com o qual ele começou a dar nas vistas como professor, e que em 1932 ganhou o nome de The Gene Kelly Studio of the Dance. Foi graças a uma série de experiências frutuosas, devido às várias solicitações que recebia para dar aulas, que chegou a Nova Iorque, em 1937, abandonando os estudos para se dedicar a tempo inteiro ao entretenimento e à dança, e procurando trabalho na área da coreografia.
Gene Kelly voltou para Pittsburgh, depois de não conseguir sucesso em Nova Iorque. Trabalhou como coreógrafo em alguns musicais, conseguindo chegar à Broadway graças a Robert Alton, que ficou impressionado com as suas técnicas de ensino. Contratou-o em novembro de 1938 para ser dançarino na peça Leave it to Me!, de Cole Porter. Começou a dar nas vistas neste e noutros trabalhos, mas foi em The Time of Your Life, peça vencedora do prémio Pulitzer, que Kelly teve um grande momento de viragem na sua carreira profissional. Estreou a 25 de outubro de 1939, e pela primeira vez, o artista dançou uma coreografia criada por ele próprio. Conseguiu alguma fama e o cargo de coreógrafo na Broadway.
O sucesso continuava, com novas produções e êxitos de bilheteira que pasmavam cada vez mais as audiências da Broadway, e consequentemente, Gene Kelly foi aproveitado pela indústria cinematográfica. Assinou contrato com David O. Selznick, partindo para Hollywood em 1941, terminada a peça Pal Joey, que chamou a atenção do lendário produtor. Ao mesmo tempo, estava a coreografar a produção teatral Best Foot Forward, não abandonando assim, o mundo que fez crescer e tornar célebre o seu talento.
Ao contrário de outros grandes atores do período clássico de Hollywood, Gene Kelly teve uma oportunidade de estreia invejável para muitas figuras do establishment da indústria. Começou logo em 1942 com a sua primeira aparição cinematográfica, O Prémio do Teu Amor, de Busby Berkeley, um musical romântico passado na I Guerra Mundial, onde contracenou com Judy Garland e assinou alguns notáveis momentos de dança. Voltaria a atuar com a atriz em 1950, com Festa no Campo, de Charles Walters.
Continuou com mais alguns musicais, e com A Festa dos Ídolos, o seu quarto trabalho no grande ecrã, realizado por George Sidney em 1943, teve pela primeira vez a oportunidade de dançar a sua própria coreografia. É uma comédia dramática que combina o melhor da música e do espectáculo, seguindo as normas comuns que regiam muitos filmes do género que se fizeram na época.
http://www.youtube.com/watch?v=ceQZhXSBdmU
Entrou ainda em alguns filmes mais dramáticos, e em 1944, em Modelos, de Charles Vidor, pôde contracenar com Rita Hayworth e estabelecer no Cinema o seu talento como coreógrafo e dançarino. E em 1945, assina um filme começaria a construir um legado extraordinário para a Sétima Arte, criando uma série de cenas memoráveis que ficaram para a memória cinematográfica (como a famosa dança entre o ator e o ratinho Jerry, uma junção entre animação e imagem real que foi inovação técnica muito importante para a época): Paixão de Marinheiro, também de George Sidney, foi um grande e definitivo pontapé de saída para Kelly, com o qual recebeu uma nomeação para o Oscar de Melhor Ator.
Teve total liberdade criativa pelo estúdio para criar a coreografia, e conseguiu a oportunidade de colaborar com Frank Sinatra, a outra estrela do filme. Trata-se de uma história ligeira, alegre e divertida, sobre dois marinheiros muito diferentes que se aventuram por Los Angeles, e que maravilhou o público e a crítica. E a parceria resultou tão bem que Kelly voltaria a trabalhar com Sinatra quatro anos mais tarde, no filme Um Dia em Nova Iorque, que co-realizou com Stanley Donen, numa história semelhante à de 45.
Teve vários outros êxitos em filmes de aventura e drama durante esse período e nos anos vindouros, mas são estes grandes musicais que tornaram única a figura de Gene Kelly. E conquistou os maiores louvores da Academia em 1951, graças a Um Americano em Paris, realizado por Vincente Minnelli. Arrecadou seis Oscars, incluindo o de Melhor Filme, com este musical sobre o amor e a luta pela sobrevivência na capital francesa, e teve ainda direito a um prémio honorário, pelo seu brilhante trabalho coreográfico em Cinema.
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No ano seguinte, faria o seu mais duradouro sucesso cinematográfico (que não foi tão bem recebido à época – talvez porque as pessoas estavam à espera de um sucessor do filme anterior): Serenata à Chuva, realizado por Gene Kelly e Stanley Donen, é uma homenagem espetacular à arte dos musicais e um festival de emoção, energia, comédia e música como raramente se viu em Hollywood. E não nos limitemos à famosa cena cantada e dançada à chuva pelo próprio Kelly: a obra está recheada de pequenas surpresas e momentos deliciosos, num trabalho que foi o fruto de um minucioso processo criativo que ainda hoje é inultrapassável.
A partir de Serenata à Chuva, a carreira cinematográfica de Gene Kelly oscilou entre o sucesso e o fracasso, continuando com mais alguns musicais que nunca atingiram a fama dos filmes anteriores. Kelly continuou a desenvolver noutras áreas do entretenimento, estando agora mais centrado no trabalho de palco e colaborando na televisão. Contudo, teve ainda alguns momentos memoráveis, destacando-se em Bem no Meu Coração, de Stanley Donen, e A Lenda dos Beijos Perdidos, de Vincente Minnelli, ambos de 1954. Em 1955 volta a colaborar com Donen, co-realizando e protagonizando o musical Dançando nas Nuvens. Mas o declínio do género musical acabou por ditar o declínio do seu trabalho.
Além de ser um grande ator e dançarino, Gene Kelly enveredou pela área da realização, onde esteve mais empenhado nesta fase. Assinou Convite à Dança, filme que também protagonizou, e dirigiu outros projetos para outros grandes atores, como The Tunnel of Love (58), Guia para um Homem Volúvel (67), Hello, Dolly! (69) e Um Clube Só Para Cavalheiros (70).
O seu penúltimo papel de relevo (e porventura um dos melhores desempenhos da sua carreira) data de 1960, e nele não vemos Gene Kelly a dançar nem a cantar: é em Inherit the Wind, de Stanley Kramer, uma história sobre o fanatismo religioso em relação à teoria do evolucionismo, em que o ator interpreta um jornalista perspicaz e cético que acompanha a par e passo o julgamento que ocorre numa pequena cidade americana, ridicularizando os propósitos extremistas da população descontrolada e irracional.
Só sete anos mais tarde conseguiu voltar a ganhar algum reconhecimento nacional e internacional, graças a um filme realizado pelo francês Jacques Demy: As Donzelas de Rochefort, que conta com Catherine Deneuve, num exercício de recuperação dos temas cómicos clássicos dos grandes musicais, a partir da história de duas irmãs que procuram o amor, num grande espetáculo de fazer inveja ao legado de Hollywood.
A década de 70 recuperou momentos de nostalgia dos clássicos da MGM: com Isto é Espectáculo! e Hollywood, Hollywood, de 1974 e 1976 respetivamente (e o segundo foi realizado por Kelly), são dois filmes em que várias estrelas dos musicais escolhem os seus momentos preferidos das grandes fitas da indústria da época. Gene Kelly apresenta, ao lado de Fred Astaire, esta espécie de best-of que glorifica o período áureo do espetáculo cinematográfico, transmitindo às novas gerações o poder e a magia dos musicais.
É um talento que ficará sempre associado à arte dos grandes clássicos musicais de Hollywood. Mas a carreira do ator não é apenas um caso de estudo notável no Cinema americano pelos grandiosos espetáculos visuais que construiu em diversos musicais. Gene Kelly foi também um dos artistas mais versáteis e criativos do seu tempo, combinando arte e entretenimento de uma maneira fabulosa e deliciosa e que continua a encantar gerações, que ficam maravilhadas com o sorriso e a energia contagiantes de um dos mais entusiasmantes artistas da História do Cinema.