Fanny Ardant foi tão obstinada como as cadências de Margo, e a sua segunda longa-metragem enquanto realizadora coloca de tal forma a estética à frente da narrativa que não passa de uma tentativa falhada de entrar no dito cinema de autor. Cadências Obstinadas vem armado de personagens fortes, mas entrega-as a um argumento vazio, sem fio condutor, perdido em si mesmo.
O elenco de luxo – que conta com nomes portugueses e internacionais como Nuno Lopes, Ricardo Pereira, Asia Argento, Franco Nero ou Gérard Depardieu – regala-nos com a sua presença, mas a mesma não chega quando falta conteúdo ao trabalho da realizadora e argumentista. Ardant descurou a história dando uma primazia exagerada e injustificável à forma, e Cadências Obstinadas perdeu todo o encanto que poderia ter, ou, pelo menos, que as suas fortes personagens poderiam prometer.
Na noite da passagem de ano, o velho Carmine lança um desafio a Furio: tem quatro meses para restaurar um velho hotel e inaugurá-lo com grande pompa. Desejoso de se mostrar à altura, Furio aceita o desafio, encorajado pela sua mulher Margo, que acredita que esta missão permitirá ao casal reaproximar-se. Enquanto o estaleiro da obra se instala, os problemas crescem em torno de Furio, que se afasta cada vez mais de Margo. Abalada, a mulher dedica-se à preparação de uma peça para violoncelo que vai interpretar na inauguração do hotel. Margo sacrificou a sua carreira de violoncelista por amor e tem agora a oportunidade de ultrapassar os seus medos e o desgosto do seu talento desperdiçado.
Ao amor à música contrapõe-se o amor a um homem. Aliada às paixões avassaladoras de Margo, está uma mal engendrada história de máfia que não nos leva muito longe. A narrativa começa por seguir a história de amor de Margo e Furio que, não sabemos bem por quê, arrefeceu. Ela esforça-se por reconquistar o marido, sem resultados, mas deixa-se facilmente tentar por outras personagens, especialmente pelo sedutor Mattia, que não percebemos bem que papel tem na trama, para além de incorporar os vícios e malícia de personagens menos abonatórias. Ao mesmo tempo, todo o restauro do hotel parece fadado ao fracasso, por entre corrupção, incompetência ou irresponsabilidade.
Margo, por seu lado, sente-se desesperada e parece pôr em causa o momento em que escolheu abandonar a carreira musical por amor a um homem. Mas tudo mais que rodeia este enredo é inconsequente e sem grande impacto ou desenvolvimento.
Cadências Obstinadas mostra-se um desperdício de actores e personagens – todas muito fortes e cheias de personalidade. É neles que reside o ponto realmente forte do filme. A protagonista transpira paixão e garra, e Asia Argento incorpora todo o mistério que a envolve numa interpretação poderosa e sentida. A trágica Margo é o motor de Cadências Obstinadas e merecia uma história à sua altura. Ao seu lado está Nuno Lopes como Furio – um homem que amou, talvez ainda ame, mas precisa reencontrar o sentimento -, numa interpretação forte como já nos tem habituado, veste a pele de um homem rude, mas a precisar de coragem, que condena os actos que fujam à lei, apesar de compactuar com eles. Uma personagem dúbia, mas com quem iremos criar empatia, apesar de tudo. Ricardo Pereira chega como Mattia, o sedutor imoral, que merecia um papel mais consistente no filme de Fanny Ardant.
Ao mesmo tempo, é um prazer rever Franco Nero – o Django de 1966 – na pele de Carmine, um severo mafioso que acha que o dinheiro compra tudo. Gérard Depardieu tem igualmente uma participação como Padre Villedieu, que proporciona alguns diálogos interessantes. Uma pena é Laura Soveral não dizer uma única palavra no filme, apesar da sua pequena participação como mãe de Carmine. Por seu lado, Tudor Istodor, que interpreta Gabriel, merecia mais tempo de antena e um papel diferente para a sua personagem, a mais amistosa de todas, sensível e sensata. Curiosa, é a participação especial do cantor Mika.
Ao negligenciar o argumento, Fanny Ardant não justificou, contudo, esse desleixo em qualquer outra parte do filme. A realização quer ser tão geometricamente perfeita que exagera, tornando algumas cenas demasiado ensaiadas, onde falta naturalidade. Há planos bonitos mas, no todo, o resultado é forçado e inexplicável para a narrativa. Um dos exemplos mais notórios é quando vemos Margo a percorrer corredores, uma e outra vez, repetidamente, até lhes perdermos a conta. Há ainda outras cenas sem explicação, em que seria preciso estarmos na cabeça de Ardant para as compreendermos. A fotografia, de André Szankowski, tem bons e péssimos momentos: por vezes temos bons jogos de luz e cor, mas, em outros momentos, a iluminação não é favorável à visualização. E num filme onde a música é uma das paixões da protagonista, a banda sonora é de extrema importância, e Jean-Michel Bernard faz um trabalho interessante, que acompanha bem a intensidade dramática e dá espaço à dimensão musical que o filme pede.
Rodado em Lisboa – Cadências Obstinadas mostra um lado misterioso e quase desconhecido da cidade -, o filme não consegue chegar ao patamar a que se parece propor – o de uma espécie de obra de autor. Os actores encarnam as personagens com alma e garra, mas o texto não faz jus às interpretações. Fanny Ardant podia ter-nos trazido uma bela tragédia romântica, mas ficou-se pela tentativa.
4.5/10
Ficha Técnica:
Título Original: Cadences obstinées
Realizador: Fanny Ardant
Argumento: Fanny Ardant
Elenco: Asia Argento, Nuno Lopes, Franco Nero, Ricardo Pereira, Gérard Depardieu, Tudor Istodor
Género: Drama, Romance
Duração: 96 minutos
Crítica escrita por: Inês Moreira Santos
*Por opção da autora, este artigo foi escrito segundo as normas do Acordo Ortográfico de 1945