A alta-costura está num impasse entre o sonho e a realidade. É esta a conclusão a que chegamos depois de observar o que tem sido apresentado em Paris na mais recente semana dedicada a este capítulo tão importante na indústria da moda. Entre o desportivo e o sonho, as inclinações variam e, se para uns a alta-costura está a perder o allure, outros enfatizam a sua proximidade com a mulher real.
A entrada de Raf Simons na casa Dior em 2012, mudou o jogo e a influência desta “tomada de posse” tem-se vindo a repercutir de várias maneiras. Raf simplificou a imagem de uma casa onde as extravagâncias de Galliano permaneciam quentes. Simplificou, editou, clarificou e, com algumas hesitações, direcionou a criação da maison francesa para uma mulher vigorosa, dinâmica, real.
E é de mulheres reais que se fez a última semana de alta-costura parisiense. Em mais uma exibição de perfeição, a Chanel incorpora o sonho da alta-costura. O Grand-Palais serviu mais uma vez de palco para o set imaculadamente branco onde, numa plataforma giratória, Sebastian Tellier tocava acompanhado por uma orquestra. Das escadas desce a irreverente Cara Delevingne, de sneakers, aos pulos na maior descontração. E assim se seguiram todas as manequins. Entre lantejoulas, plumas, transparências, camadas de chiffon e trabalho artesanal, como sempre, irrepreensível, Lagerfeld revisitou as silhuetas da casa numa abordagem fortemente desportiva.
A Dior deixou o pretensiosismo em casa e desenhou para a mulher atual. Raf Simons dialoga abertamente com o corpo com formas puras, blocos de cores integrais, bordados discretos e overlayering com cortes que revelam transparências e outros detalhes delicados. O funcionalismo frui numa aproximação clara ao pronto-a-vestir, cujo ponto de honra está no corte, muito próximo da proporção do corpo e com um toque fugaz de sensualidade.
“Não é um questão de permanência, nem de uma imagem couture.“, refere o designer. É impossível que não nos questionemos sobre o sentido da existência da alta-costura. Onde reside o sonho? Talvez este precise de ser cerceado e dar lugar a território palpável e é desta água que bebe o criador belga.
Fortemente influenciado pela estética de Raf, Giambattista Valli apresentou uma coleção que freia a incursão no exagero. Demonstra em plenitude o know-how construtivo dos seus artesãos com volumetrias claras e consistentes, sobrepostas a padrões e bordados. O discurso mais depurado onde, todavia, não se percebe onde acaba Raf e começa Valli, e vice-versa.
A equipa de Margiela continua a gerar debate em torno de tópicos atuais: criar sobre o sobrevalorizado e o ignorado, questionando sobre o que constitui valor na moda, e fazer apologia ao trabalho artesanal. Roupas vintage foram a matéria-prima para recontar histórias e pensar sobre ciclos de vida dos produtos, sob a tutela da rebeldia a que a marca nos habituou.
Do lado oposto da fronteira moram os percussores do sonho e do esplendor da haute couture “bon genre“. Valentino, através da dupla Pier Paolo Piccioli e Maria Grazia Chiuri, vagueou por 55 óperas italianas. De criaturas selvagens a personagens soturnas, revisitaram bordados de gemas e fio de ouro e as silhuetas românticas e vaporosas a que já nos habituaram e que piscam o olho à estética de Florence Welch, sentada na primeira fila. Num fôlego, a fantasia toma o set com o toque certo de dramatismo que não compromete a delicadeza das peças.
Em contínua celebração da feminilidade, da sedução e do luxo, a Versace e o libanês Elie Saab têm o foco apontado às senhoras do Médio Oriente, generosas clientes destas casas onde uma peça pode superar o valor de cem mil euros. O target é muito importante na definição do produto que as casas apresentam. O alvo da Dior ou da Chanel, mais que o mercado europeu, é o mercado em ascensão (China, Brasil, Argentina, Angola), países que, de muitas maneiras, tentam reproduzir o estilo de vida do velho continente, ao qual o vestir não é alheio.
A Versace continua, entre o kitsch e o trashy, a brincar com referências, desta vez, à indumentária feminina árabe. O desfile contou com a presença de Lady Gaga, a mais recente aquisição publicitária da marca.
Armani Privé dividiu as hostes. Se alguns adormeceram na primeira-fila do desfile, outros aclamaram a sua preserverança e o seu vigoroso classicismo. Nos anos 80, Armani foi responsável por renovar a moda italiana, depurá-la e aproximar a roupa do corpo verdadeiramente, um estilo que permaneceu inerte na marca, com algumas incursões tecnológicas que, ainda assim, não o salvam de algumas críticas menos favoráveis da indústria americana. One Night Only foi o sonho de uma noite que imprimiu nesta coleção influências orientais e ciganas, de uma placidez senhoril onde ressalta o corte exímio dos fatos e a riqueza de padrões.
Passadas em revista as casas que lideram hoje o discurso de moda, eis a pergunta que se coloca: nesta luta quem sairá vencedor? Os titãs que investem na abordagem prática e desportiva voltada para a mulher do século XXI ou os criadores que se focam no luxo excêntrico e desmesurado?
Qualquer que seja a resposta, a moda está a assumir profundas mudanças. Estão a surgir novos mercados e nas semanas de moda já existentes, algumas estão a perder terreno e outras a subir ao pódio. A alta-costura, até há poucos anos, parecia estar fadada ao desaparecimento e o fantasma ainda persiste, daí a urgência da sua renovação.
Os delatores de Raf Simons aludem, todavia, à perda da identidade de umas das marcas mais icónicas da moda contemporânea e da essência e exclusividade da alta-costura. Abrir fronteiras é o mote do criador e o mesmo parecem acreditar os que lhe têm, com maior ou menor veemência, seguido as pisadas. Aguardemos os próximos capítulos.