Se a noite de sexta foi, tanto ao nível dos concertos como das mudanças de sala, rica em euforia e agitação, bem espelhadas nos melhores concertos (com Young Fathers e Wavves a disputarem o primeiro lugar, seguidos de perto pelas Savages), a segunda dose do Vodafone Mexefest deste ano foi, de certa forma, pautada por uma maior acalmia para os nossos corpos e ouvidos.
Arrancámos o sábado com o concerto das três grandes promessas da música brasileira, Cícero, Wado e Momo, numa actuação conjunta baptizada com o pomposo chavão de “Brasil d’Agora”. De guitarras em riste, acompanhados pelos “tugas” Bernardo Barata (dos Diabo na Cruz e fundador dos já extintos feromona), Fred (dos Buraka Som Sistema e Orelha Negra) e Alexandre Bernardo (dos Laia), o trio foi até ao BES Arte & Finança apresentar as canções dos seus discos, perante uma generosa plateia, ansiosa de assistir a tão bela comunhão “tropicalista”.
A entrada, precedida por problemas técnicos iniciais, foi feita “a pés juntos”, com Rosa (de Wado), Tempo de Pipa (de Cícero) e Tenho de Seguir (de Momo), com interpretações bem mais ácidas e pungentes do que nas versões de estúdio, em virtude da distorção e dos arranjos mais “roqueiros”. Seguiram-se outras belas peças, como Duas Quadras, Ponta dos Dedos, Ela e a Lata, Primavera Árabe, Nuvem Negra e, para terminar, Laiá Laiá, tudo sob o olhar atento do “casal real” do revivalismo mpb, Marcelo Camelo e Mallu Magalhães, que puderam assistir do fundo da sala a uma belíssima celebração da nova vanguarda da pop de terras de Vera Cruz.
Depois de roubar um par de setlists e sacar um autógrafo a Wado (também queríamos apanhar Momo e Cícero, mas o primeiro foi demasiado esquivo e o segundo foi aproveitar o seu estado “transcendental” para o backstage), rumámos Avenida abaixo, em direcção ao Coliseu, para apanhar a estreia dos britânicos Daughter em Portugal.
Numa sala a abarrotar, o trio encabeçado por Elena Tonra trouxe até nós uma remessa de canções retiradas de If You Leave, LP de estreia lançado este ano. A indie pop da banda, cambaleando entre as passagens contemplativas e oníricas e os clímax instrumentais portentosos, deixou ao rubro os milhentos fãs que ali estiveram, ansiosos por ouvir temas como Still, Love, Smother e, lá está, a orelhuda Youth. Confessamos que, para nós, continuam a ser uns The xx dos pobres com um instrumental mais portentoso e menos electrónico (não que isso seja necessariamente mau), mas a verdade é que ninguém lhes tira o mérito de terem dado um concerto irrepreensível, com um Coliseu a seus pés.
Subimos de novo, desta vez até à sala principal do Cinema São Jorge, para o concerto de Erlend Oye. O norueguês, metade dos Kings of Convenience e mentor do projecto The Whitest Boy Alive, apresentou-se em Lisboa acompanhado de Victor, flautista, e Maurizio, guitarrista, para mostrar algumas das novidades de La Prima Estate, disco que ainda está em gravações na Islândia.
Afável e bem-disposto, Oye enfrentou de forma paciente os problemas técnicos com o microfone da flauta e manteve a plateia animada entre canções, explicando de forma cómica as razões por detrás da sonoridade mais calma nos seus trabalhos a solo mais recentes (problemas de ouvidos, disse ele) e de onde veio a inspiração para os seus novos temas e para a cover de Grande grande grande, de Mina Mazzini (a sua recente mudança para Siracusa, em Itália).
Houve também tempo para dar destaque a Maurizio, que interpretou sozinho Uma Tarde em Itapoã, de Vinicius de Moraes e Toquinho, antes do encerramento com La Prima Estate, perfeita canção de Verão. O público ficou rendido, e nós sublinhamos por baixo: esteve aqui um dos grandes concertos do festival.
Nova descida, desta vez em direcção à Casa do Alentejo, onde conseguimos apanhar os últimos 15 minutos da actuação de Braids. O trio canadiano, que substituiu Autre Ne Veut e veio apresentar Flourish // Perish, segundo registo de originais, conseguiu esgotar a Sala dos Espelhos, trazendo até nós a sua arrebatadora parede de som, banhada pelos tons experimentais do shoegaze e da synthpop.
In Kind, última canção do alinhamento, conseguiu hipnotizar todos com os seus drones graves, a percussão possante e os sintetizadores cintilantes, e estabeleceu esta actuação como uma das grandes revelações do festival. E para que fique lavrado em acta, ficou provado que Raphaelle, vocalista do grupo, é das cantoras indie mais adoráveis que por aí andam.
Seguimos depois para a Estação Vodafone.FM, no Rossio, para vislumbrar um pouco do concerto de Oh Land. A nórdica, repetente nestas andanças, trouxe até nós a sua pop de inverno, acompanhada de uma numerosa banda, hábil em dar vida às canções de Fauna (2008), Oh Land (2011) e Wish Bone (2013).
Perante um pátio a rebentar pelas costuras, e com uma acústica manifestamente melhor que aquela que encontrámos na noite anterior no mesmo espaço (kudos para o engenheiro de som), a dinamarquesa apelou à dança com as infecciosas Pyromaniac, Love a Man Dead e Wolf & I. Tivemos pena de não poder apanhar mais do concerto, mas ficou aqui uma sólida e contagiante demonstração por parte de Oh Land. Se tudo correr bem, não tardará muito o seu regresso.
Estucamos o passo para apanhar o nosso último shuttle da noite. Destino: sala principal do Cinema São Jorge, onde regressamos para, desta vez, ver o concerto de The Legendary Tigerman, nom de guerre de Paulo Furtado. O artista de Coimbra montou um verdadeiro one-man show, intercalado, de forma pontual, por alguns convidados que foram aparecendo para dar uma mãozinha (em especial Paulo Segadães, baterista dos extintos Vicious Five e novo companheiro de estrada do “homem tigre”), num espectáculo de blues rock coberto de pó, sujidade e brilhantina, bem ao estilo do que Furtado nos tem habituado.
Intercalando versões várias de clássicos intemporais do blues com os seus próprios clássicos (nunca imaginámos que 20 Flight Rock pudesse conviver tão bem com Fuck Christmas, I Got the Blues), Tigerman foi incendiando a plateia com riffs rasgados, solos arrepiantes e versos nasalados, que nem um bluesman do delta norte-americano. Mais perto do fim, And then Came Pain suscitou uma das maiores ovações da noite, num concerto que consagrou The Legendary Tigerman como rei e senhor do blues em terras lusas (e quiçá da Europa).
Para os mais destemidos ainda houve, no Coliseu, a Discotexas Picnic Live, com Mr. Mitshuhirato, Mirror People, Da Chick, Moullinex e Xinobi a transformar uma das mais emblemáticas salas de espectáculos do país numa pista de dança improvisada. Quanto a nós, o plano foi o regresso a casa, para recuperar as forças perdidas na roda-viva que foi este Vodafone Mexefest. Até para o ano!
Fotos: Beatriz Nunes
*Este artigo foi escrito, por opção do autor, segundo as normas do Acordo Ortográfico de 1945