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AmadoraBD 2015: A criança e o universo mágico da banda desenhada

O Amadora BD – Festival Internacional de Banda Desenhada inaugurou a sua 26.ª edição, que celebra A Criança na BD,  no dia 23 de outubro. Até dia 8 de novembro, é possível visitar o principal acontecimento do panorama bedéfilo nacional e um dos mais importantes eventos dedicados à 9.ª arte a nível europeu.

O Amadora BD – Festival Internacional de Banda Desenhada  não só promove a banda desenhada e as artes que lhe são próximas (como o cartoon, a ilustração e o cinema de animação, por exemplo) como incentiva a leitura e divulga autores e obras de banda desenhada portuguesa e estrangeira, estabelecendo-se como uma plataforma de reflexão, discussão e desenvolvimento de atividades relacionadas com o universo da banda desenhada.

Exposição Central

Quim e Manecas, uma série de pranchas semanais, nasceu em 1915 nas páginas d’O Século Cómico, o suplemento humorístico do jornal O Século. Em ano e meio, passou a integrar a Ilustração Portuguesa, estendendo-se até 1953, com alguns hiatos no período pós Grande Guerra. É o traço experimentalista e o fiel, expressivo e mordaz retrato sociopolítico da época que tornam Stuart Carvalhais um dos grandes ativistas do modernismo português. No âmbito do centenário dos seus personagens, e tendo em conta a importância da sua obra ímpar e percursora no panorama editorial da banda desenhada portuguesa e europeia, o comissariado é inspirado a criar uma exposição que demonstra como a criança se apresenta como símbolo de descoberta, aprendizagem, imaginação e liberdade tanto para miúdos como para graúdos.

“a exposição central é apresentada em seis núcleos e mostra preocupação quer em realizar uma panorâmica tão representativa quanto possível do mundo infanto-juvenil na visão dos autores de BD (…)”

Neste sentido, pretende-se refletir sobre a evolução da representação da criança, ao longo dos tempos, na banda desenhada. Dos meninos traquinas aos exemplares, aos heróis e histórias de aventura e, claro, sem nunca esquecer o incontornável trio de crianças filosóficas, Peanuts, Mafalda e Calvin&Hobbes, a exposição central é apresentada em seis núcleos e mostra preocupação quer em realizar uma panorâmica tão representativa quanto possível do mundo infanto-juvenil na visão dos autores de BD quer em destacar as séries e os heróis que marcaram o imaginário dos leitores portugueses.

O primeiro núcleo da exposição central foca-se nas Tropelias Infantis, da inocência à perversidade, apresentando duas tendências que se cruzam no que diz respeito à presença das crianças na banda desenhada moderna: a representação das crianças traquinas, ou mais do que isso, “que fazem trinta por uma linha”, e a das bem comportadas, que surgem como exemplos a seguir. Contudo, são as crianças diabrete, “aos pares ou com maiores ou menores enquadramentos familiares e de grupo”, que dominam a BD.

O segundo núcleo, dedicado aos heróis e às suas aventuras, apresenta um universo, o do séc. XX, com uma maior continuidade narrativa quer através de um aumento dos elementos do maravilhoso quer no que diz respeito à ação. Aborda-se ainda a presença do humor na banda desenhada, sobretudo nas obras europeias, e o facto das brincadeiras das crianças não serem apenas peripécias mas retratos de descoberta do mundo, de camaradagem e coragem perante situações adversas.

Segue-se A infância em grupo, com a família e a escola, apresentando como exemplos os Katzenjammer Kids ou Bob et Bobette. A primeira banda desenhada conta as aventuras de Hans e Fritz, duas crianças que vivem numa pensão com a sua mãe, na companhia de outros dois personagens, o Capitão e o Coronel, que passam a vida a atormentar. A segunda obra gira à volta de Bob e Bobette, na companhia dos seus amigos e família, misturando elementos de comédia, fantasia e ficção científica. Reflete-se, portanto, sobre a vida na rua e em grupo, as amizades e os conflitos que costumam ser passageiros, porque resguardados por um ambiente familiar, e a descoberta da sexualidade.

Num outro momento, surge aquele que é, na perspetiva portuguesa, o trio incontornável de crianças filosóficas. Ainda que compartilhem a transversalidade: “Em termos de impacto nos leitores, poderíamos dizer que os Peanuts foram sobretudo uma descoberta adulta, a Mafalda infantil e o Calvin para toda a família”, como se pode ler ao visitar a exposição. Personagens maduros, filosóficos e revolucionários, que desvendam a psicologia infantil e representam sínteses densas e vivas da criança na história da BD.

Para finalizar, é apresentado ao público uma conclusão e revisitação da infância, que apresenta os problemas humanos, em geral provocados pelos adultos, com que as crianças se confrontam. Um núcleo mais intenso que relembra os mundos e as denúncias por explorar, apresentando uma reconstituição da História através do olhar pessoal da criança. O diário do meu pai e Persépolis são dois belissímos exemplos. Aliás, esta última banda desenhada trata-se de um retrato, da autoria da iraniana Marjane Satrapi, acerca das transformações causadas pela revolução islâmica, através de um trajeto pessoal, que apresenta uma linguagem que tanto se mostra irónica e divertida como dramática e angustiante. As mudanças no vestuário, a História da Pérsia, os terrores infantis e as mudanças radicais na educação são apenas alguns exemplos dessas transformações que mudaram quer o Irão quer o mundo, contribuindo também para o crescimento de Satrapi e, sem sombra de dúvida, para o nascimento de uma obra absolutamente imperdível.

Exposições secundárias

Os Quadrinhos da Fundação Casa Grande, exposição da autoria de Filipe Silva e Tainara Meneses, representantes da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, está localizada no mesmo espaço da exposição central, tal como A Batalha, 14 de Agosto de 1385, de Pedro Massano, desenhador e argumentista. Esta última retrata, de forma dramática e detalhada, um evento importante da História de Portugal, a Batalha de Aljubarrota.

Num outro espaço, o piso -1, encontra-se a Zona de Desconforto, uma edição da Chili com Carne, considerada o Melhor Álbum de BD Portuguesa. Da autoria de Daniel Lopes, Júlia Tovar, Ondina Pires, Francisco Sousa Lobo, Tiago Baptista, Christina Casnelie, José Smith Vargas, Amanda Baeza, André Coelho e David Campos, apresenta-se como o resultado de um convite à saída da zona de conforto, levando jovens a trabalhar fora de Portugal. Um registo autobiográfico que reflete uma geração que ainda sofre as consequências da crise económica portuguesa.

“Outra exposição a destacar é a Hawk, de André Oliveira, que conta a história de um contratempo, que surgiu de uma experiência vivida pelo próprio autor”

Outra exposição a destacar é a Hawk, de André Oliveira, que conta a história de um contratempo, que surgiu de uma experiência vivida pelo próprio autor. Vencedor do Melhor Argumento para Álbum Português, expõe situações pessoais e inquietações. Completamente diferente é a exposição No Presépio…, de José Pinto Carneiro e Álvaro, que se apresenta como uma crítica satírica, cheia de humor, aos valores familiares.

As Serpentes de Água, de Tony Sandoval, são outra exposição a não perder quer pela presença dominante da cultura mexicana quer pelas influências cosmopolitas da Europa, com o Gótico e o Doom Metal, uma forma extrema de heavy metal, inspirações que se refletem na sua arte.

“Apesar do mercado editorial da banda desenhada ser considerado um nicho, perceciona-se, segundo o diretor do Amadora BD, um aumento de público”

O exposição do Ano Editorial Português permite perceber qual a pluralidade de títulos que se publicaram em Portugal, no período entre festivais, com a apresentação de alguns destaques selecionados pelos comissários Luís Salvado e Sara Figueiredo Costa. Apesar do mercado editorial da banda desenhada ser considerado um nicho, perceciona-se, segundo o diretor do Amadora BD, um aumento de público, que acaba por ser formado também em virtude da existência de atividades culturais relacionadas com este universo.

Lôá Perdida no Paraíso, O Pugilista, 30 Anos de Tertúlia de BD de Lisboa, Jim del Monaco, Projeto Escolhe Viver, Não Pises o Risco são as restantes exposições presentes no Amadora BD – Festival Internacional de Banda Desenhada até dia oito de novembro. Existem ainda exposições paralelas, na Bedeteca, Casa Aprígio Gomes, Biblioteca Camões, Junta de Freguesia de Benfica e nos Recreios da Amadora (espaço que substituiu o Ponto das Artes, na LxFactory).

Arquitetura e imaginário infantil

“Através do recurso a material reciclável, o Amadora BD é transformado numa feira popular de banda desenhada”

É necessário, claro, destacar a própria arquitetura do espaço, graficamente associada ao imaginário infantil. Através do recurso a material reciclável, o Amadora BD é transformado numa feira popular de banda desenhada. Um local mágico, de ambiente envolvente que incita à curiosidade, pelos seus inúmeros esconderijos e respetivas surpresas, como a escada-palhaço, um escorrega, salas secretas e até um labirinto. Segundo Nelson Dona, o diretor do festival, foi reciclado e reutilizado material de anos anteriores, após se ter dito aos arquitetos que “isto são peças de lego, agora inventem lá algo diferente”. Acrescentou que a ideia de usar o cartão como elemento arquitetónico, surgiu “não só da necessidade de encontrar condições financeiras de baixo custo como também soluções de montagem rápida e que, do ponto de vista ecológico, fossem interessantes”.

O espaço dedicado às sessões de autógrafos é o exemplo perfeito do ambiente dinâmico que se tentou criar. Os autores convidados do Amadora BD encontravam-se no interior de uma estrutura que, além de relembrar o carrossel de cavalos das feiras populares, permite aos visitantes girarem, passando de um autor para outro. As filas mostraram-se intermináveis, recriando-se à medida que pareciam estar quase a desaparecer. De conversas entusiasmadas a livros ilustrados na hora, notou-se a importância para os leitores que é poder ter acesso aos seus autores preferidos.e, simultaneamente, a editoras, como a Arte de Autor, a Chili com Carne, a Babel, a Polvo, a Leya, a Devir, a KingPin Books, a Levoir, a Comic Heart, a Dr. Kartoon e a G. Floy Studio, editora dinamarquesa que opera em vários mercados europeus e que recentemente anunciou um plano editoral que inclui a premiada e aclamada série de banda desenhada, Saga, de Brian K. Vaughan e Fiona Staples.

O Espalha-Factos aproveitou para conversar quer com Nelson Dona, o  diretor do Amadora BD – Festival Internacional de Banda Desenhada, quer com alguns dos autores portugueses, presentes no evento, no dia um de novembro. As entrevistas serão publicadas em breve, assim como um artigo dedicado ao Cosplay e, em especial, ao Desfile de Cosplay do festival. Até lá, recomenda-se uma ou mais visitas ao Fórum Luís de Camões, até dia oito de novembro, o último dia da 26.ª edição.

Fotografias por Raquel Dias da Silva