No Oeste português encontra-se uma cidade, Caldas da Rainha de seu nome, que todos os anos por alturas de Maio é invadida por uma enchente de arte e cultura que a transfigura por completo. Concertos, performances, instalações, exposições de fotografia, enfim, o rol de actividades espalhadas pela cidade é interminável durante os dois dias do Caldas Late Night, evento organizado pela Escola Superior de Artes e Design e caracterizado pela sua natureza independente e “faça você mesmo”.
A aventura começa na tarde de sexta feira, dia 24. Apesar de já haver alguns curiosos a formarem pequenos grupos, a calmaria está instalada na Praça 5 de Outubro, à excepção de membros da organização que trabalham afincadamente na esplanada do bar Daiquiri, dobrando e distribuindo mapas do Caldas. Num dos pontos da praça encontra-se calcetada uma casa a dizer por baixo “CLN”. João Filipe Costa, conhecido junto aos amigos por Bobi, não faz parte da organização mas já conhece os cantos à casa e por isso oferece-se para ser um guia não-oficial durante os dois dias do evento.
O estudante de Produção Musical na ETIC, em Lisboa, propõe-se a explicar o que é isto do Caldas Late Night. “Pá, o conceito fundamental do Caldas é que as pessoas abrem as suas casas para se fazerem exposições e actividades. Foi assim que tudo começou, podes entrar nas casas que estão assinaladas com números na boa. Isto é importante porque dá oportunidade aos estudantes da ESAD de mostrar os seus projectos e dá movimento às Caldas”.
Este ano o Caldas conta com 134 postos por toda a cidade alguns dentro das mesmas casas. Com tanta coisa para ver e com eventos a decorrer em simultâneo, é mesmo necessário recorrer ao mapa para escolher o que ver ou então deixar-se levar pela corrente. Uma das actividades mais badaladas é a Pillow Fight. O que é a Pillow Fight? Simples, cada participante aparece espontaneamente com a sua almofada e vão se fazendo rondas de luta macia.
Na Praça da Fruta onde vai decorrer a luta surgem dois estudantes da ESAD que aproveitaram a azáfama para vender cerveja gelada aos transeuntes, numa verdadeira demonstração de empreendorismo. Um deles, João Nunes, encontra-se no primeiro ano a tirar o curso de Som e Imagem e este é o seu primeiro Caldas Late Night. “Saí de casa há 10 minutos e já tou a curtir, vê bem, há 10 minutos. Quero conhecer pessoas novas, ir a casas, ver cenas. E logo à noite é para partir tudo.” Logo à noite? “Agora estamos a vender cerveja, e logo à noite vamos ajudar no arraial no Leão Azedo”, uma típica festa de bairro com cerveja e música popular a rodos.
Quanto à luta em si, serviu para separar as boas das más almofadas. Foram cerca de 8 rondas, algumas de rapazes contra raparigas, onde o cansaço se foi acumulando rapidamente e o algodão também. Eduardo Lopes, a acabar o mestrado em Design de Produto depois de uma licenciatura em Design Industrial, é um dos organizadores da Pillow Fight que “começou em 2006 por vontade de alguns alunos. Esta é a 8ª edição e acho que é das maiores de sempre, nunca vi tanta gente junta com almofada na mão.” Eduardo é um firme defensor do Caldas, considerando-o “o maior evento a nível nacional em que o pessoal pode mostrar com total liberdade qualquer coisa que queira, tanto a nível de trabalho como a nível de projecto pessoal… tudo, tudo o que te passe pela cabeça.”
Esta última frase não podia ser mais verdadeira: no Caldas vê-se de tudo. Desde uma instalação numa pequena loja do Centro Comercial D.Carlos onde estava um emaranhado de fios que acabava num gato de peluche enforcado, estando tecido na parede atrás “A curiosidade matou o gato”, até uma exposição de pinturas de super-heróis contaminadas com soluções acídicas. Há também espaço para o humor, podendo ver-se um crucifixo feito de ambientadores para o carro com a forma de Jesus Cristo ou uma exposição no bar Demodé a meias entre as ilustrações de Gatuno e notas afixadas na parede, num português inventivo, das queixas que a vizinha do lado faz do barulho.
A música também é uma parte essencial do Caldas. Quem passasse pelo C.C Don Carlos seria recebido pelos Anger Feeds, Nasty World e Challenge com o seu som fulgurante do hardcore punk a ser tocado dentro de uma das lojas, cuja intensidade foi tal que o espaço mais parecia uma estufa, com suor a escorrer pelas vitrines. Por outro lado, quem apreciasse um ambiente mais familiar podia ir ao Pitstop no largo do Hospital Termal, que tinha um workshop de papagaios de papel, bancas com cerveja artesanal e cupcakes de manteiga de amendoim e chocolate e música mais relaxada, como a dos Raging Dildos, banda composta por vários elementos do Conservatório das Caldas da Rainha. O largo transfigurou-se à noite, com o rock dos Leaf e dos Fuzz a ecoar pelas paredes iluminadas de projecções.
O Caldas e as Caldas
“Há sempre aquela ideia de que os artistas são uns bêbedos e uns drogados mas depois organizamos um festival que consegue dinamizar uma cidade que durante o ano é mais, vá, pacata.” As palavras são de Francisca Venâncio e Filipa Águas, ambas estudantes na ESAD e parte da organização do Caldas Late Night no departamento de Comunicação. Embora as gerações mais velhas ainda torçam um pouco o nariz, a verdade é que a cidade foi progressivamente abraçando o Caldas, incluindo a Câmara Municipal, que é colaborante (como se viu no exemplo da calçada) mas não intrusiva – “Há uns anos um professor fez a proposta à Câmara de pegar no Caldas como um evento camarário e a Câmara disse que não porque isso ia matar o Caldas. Eles também têm noção do que o Caldas representa”.
A única regra para os organizadores é que a integridade do evento se mantenha. As organizações mudam de todos os anos, sendo que “há sempre algum maluco que se lembra «Pronto, bora lá, vamos nós este ano pegar no Caldas»”. Criado como forma de protesto às restrições que a ESAD impunha a alguns projectos, o Caldas permite que qualquer pessoa demonstre o seu trabalho, e o único critério é que ninguém se “balde” ao que se comprometeu. Com o crescimento, o Caldas começou também a sofrer o assédio de grandes marcas como a Red Bull, mas as organizações sempre recusaram o patrocínio: “isso ia por em causa a integridade do evento a 100%”. Quanto aos cortes do governo à educação e à cultura são sucintas: “o Caldas consegue viver sem apoios porque foi assim que o Caldas nasceu. Não ajudam? Nós fazemos as coisas à mesma. Se não há vidro, usa-se plástico.”
O comércio da cidade agradece o todo movimento . João Neves, dono do café Mercado Paralelo, confessa-se um fã. “É muito bom para o negócio, há uma circulação de pessoas que não se vê no resto do ano” diz João, “eu sempre que posso participo no CLN e disponho do muito espaço para actividades”, como se viu quando a trupe de músicos ambulantes do Projecto Bug entrou de rompante pelo seu estabelecimento a tocar clássicos como Bella Ciao e I’ve Got a Woman. Mais abaixo, junto ao parque municipal D.Carlos I, fica o Parqe Club. O seu dono, Telmo Cipriano, tem participado activamente no Caldas, desde a organização do Pitstop no ano anterior à disponibilização do seu espaço para festas de angariação de fundos. Este ano no Parqe houve uma maratona de design gráfico, DJ sets, concertos de bandas como os Quelle Dead Gazelle e os Moe’s Implosion e é a discoteca onde haverá a after-party às 7 da manhã.
Mas o Caldas também tem um importante papel de requalificação. Desde que foram desactivados, em 2003, os silos de moagem da Ceres vinham sendo um problema para a cidade. “A dada altura estavam lá só drogados” disse Bobi, “mas o Caldas conseguiu renovar o espaço.” Depois de terem sido recuperados pelo Caldas, os silos são agora utilizados para actividades como exposições de fotografia, performances e até um estúdio de música no terceiro andar. Foi também nos silos que Marta, Diana, Valter e Pedro fizeram a sua Performance Against Monsanto, uma actividade de protesto contra a multinacional americana. Diana defende que “a arte pode ser uma arma política. Desde que as pessoas se exprimam, de acordo com a maneira como se sentem, é sempre válido. É uma forma de comunicação brutal entre as pessoas, em que te apercebes de coisas da tua essência, é uma forma muito fixe de fluires a comunicação para que as pessoas pensem e ajam em conjunto”.
O final apoteótico do Caldas dá-se tradicionalmente na ESAD, cuja festa já tomou proporções tais que “já há muita gente que vem ao Caldas porque tem uma grande festa no fim”, como se queixa Francisca. Durando toda a noite, com múltiplos espaços onde passam o Rock, o Electro, o Trap ou o Trance, a festa da ESAD é aonde se agrupa grande parte das 5.000 pessoas que se calcula terem vindo ao Caldas deste ano. As ruas das Caldas da Rainha estavam fantasmagóricas na manhã seguinte, sem vivalma, pelo menos de jovens. Maria Rebelo, uma senhora velhinha acabada de sair de uma papelaria diz que “é pena a confusão toda, mas fico feliz que os jovens se divirtam”.