Samuel Úria “nunca foi do prog-rock” mas sabe o que é preciso para um belíssimo concerto. Tal ficou provado na passada sexta-feira, quando a sala TMN ao vivo encheu para receber o músico de Tondela, acompanhado de vários amigos e talentos da música nacional. Em quase duas horas de concerto apresentou-se O Grande Medo do Pequeno Mundo quase na íntegra, tocaram-se temas mais antigos, houve colaborações inesperadas e extraordinárias, acompanhadas, sempre, de um excelente sentido de humor.
O violino de Miriam Macaia deu início ao concerto com os primeiros acordes de Prelúdio e Samuel a entrar em palco, vestido a rigor, com um fato “quitado pela mãe”. Sem grandes conversas, seguiram-se Essa Voz e Água de Colónia da Babilónia, tema que trouxe “quórum” ao palco com um coro afinadíssimo “de gente simpática”.
Oferecendo “uma prenda em forma de pessoa” ao público do TMN ao Vivo, Samuel apresenta Jorge Rivotti, o “Sean Connery português, mas mais novo e mais talentoso nas artes musicais”, para cantar Deserto em dueto, tal como no álbum. “Esta não conhecem de certeza, porque é nova”. Rapidamente nos apercebemos da ironia de Úria, quando na verdade se tratava de Não arrastes o meu caixão, um dos seus temas mais conhecidos, numa interpretação poderosíssima, com uma excelente conjugação entre as luzes strob e a guitarra de Jonatas Pires (um dos elementos dos Pontos Negros que acompanhou Samuel Úria nesta viagem).
No tempo “para falar de coisas sérias” e de “inibições emocionais”, foi a vez de Lenço Enxuto, tema dolente e emotivo numa versão que, para ser perfeita, só lhe faltou mesmo a voz de Manuel Cruz como na versão do disco. Foi difícil deixar o “lenço enxuto” e contrariar a lágrima de comoção que teimava em querer soltar-se neste tema.
“Conheces Tiago Bettencourt?” foi a punch-line da história de um quase-assalto pelo qual Samuel passou, algures entre o Intendente e a Avenida Almirante Reis. Foi com essa história caricata, quase num solilóquio de stand-up comedy, que Úria apresentou o seu amigo Tiago Bettencourt, convidado “por cortesia, quase por obrigação” para tocar consigo, numa forma de retribuir o convite e a actuação no concerto – o Coliseu acústico – de Tiago, no passado mês de Março. Em conjunto, cantaram e tocaram Lamentação e Eu esperei, tema de Tiago Bettencourt.
Depois de um momento intimista (ainda que cómico pelas piadas e picardias entre os dois músicos), a energia dançável voltou com o clássico Teimoso, cantado de cor e salteado por todo o TMN ao vivo. Para Eu Seguro, Samuel contou com a colaboração de um “casal especial”: Márcia e Filipe da Cunha Monteiro. Entre comentários bem-humorados e a “pirotecnia capilar” de Márcia, o dueto que serviu de single a O Grande Medo do Pequeno Mundo teve um sabor (ainda mais) especial ao vivo, com a cumplicidade enternecedora dos dois cantores e a plena afinação das suas vozes que, juntas, formam uma só. Houve ainda tempo para cantar em dueto O mais humano sentimento são, tema do álbum Dá, de Márcia.
Armelim de Jesus, tema dedicado ao avô materno de Samuel, marcou outro dos momentos emotivos da noite, mas havia ainda tempo para mais surpresas e colaborações. Alex D’alva Teixeira e Tiago Guillul (que já tinha sido ouvido no TMN ao Vivo, fazendo parte da playlist que tocava na sala antes do início do concerto), amigos e também elementos do clã Flor-Caveira, subiram ao palco para uma interpretação extraordinária de O Diabo. Subitamente, a atmosfera mudou e parecíamos transportados para um concerto de hip-hop, com direito a movimentos de quase-break-dance de Samuel Úria e tudo.
A recta final do concerto começava a aproximar-se com Em caso de Fogo e Império, tema que fecha habitualmente os concertos do “Tio Sam”. Rua da Fonte Nova foi uma surpresa (até para o coro) no alinhamento, mas foi ao som de Barbarella e Barbaralla, num tango muito eficaz, e da poderosa Tigre Dentes de Sabre que se deram as despedidas finais, mesmo que depois ainda se ouvissem alguns “toca aquela!”.
Apesar da ausência de Triunvirato, com Miguel Araújo e António Zambujo (como aconteceu no concerto do Porto, na Casa da Música), o público lisboeta não se pode queixar, pois viu o neo-retro-redneck na sua melhor forma. Samuel Úria, definitivamente, não nasceu pedra. Caso para dizer que o rock português ainda está vivo e de boa saúde. Que a teimosia persista!
Fotografias de Sónia Pena