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À vontade para aplaudir Shakespeare

Todos sabemos que a sala principal do Teatro Nacional D. Maria II é um local mágico, onde o gosto pelo teatro se partilha em cada rosto. Todos sabemos também que Shakespeare encanta qualquer um, mesmo que não se partilhe um gosto especial por teatro. Se pensarmos então numa junção destes dois elementos há uma atmosfera quase sobrenatural, mais mágica que o habitual.

Em À vossa vontade, o público, entusiasmado por um lado, relutante por outro, entra na Sala Garrett e rapidamente se deslumbra: não apenas com a irrefutável beleza da sala mas também com o ambiente cortesão que Álvaro Correia teve o cuidado de criar.

Numa co-produção com a Comuna – Teatro de Pesquisa, o público é convidado a deleitar-se com Shakespeare impregnado na própria corte inglesa do século XVII. A cortina está fechada e os atores à boca de cena preparados para duas horas e meia de inquietação. De repente começa: há palavras eruditas a ecoar nas paredes da sala que, recheada de atores de trás para a frente, uns vindos do meio de nós, outros bem lá distantes no local sagrado circundado por cortinas vermelhas, fixam o nosso olhar em cada pormenor, que nos faz pedir mais e mais. Inicia-se a peça com um tom rude, cheio de disfarçadas boas-maneiras e procedimentos protocolares, numa fuga à liberdade das almas e das paixões.

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Trata-se de uma comédia, nunca antes encenada em Portugal, das poucas escritas pelo dramaturgo inglês. No palco, reúnem-se atores experientes, outros que nem tanto, que fazem florir a arte tão bem escondida e desprezada num país que se pode orgulhar de ainda a ter.

Quem conhece minimamente o teatro português só pode entusiasmar-se por ver Álvaro Correia, Carlos Paulo, João Lagarto ou Vítor Norte juntos. Também Cristina Carvalhal e Manuela Couto espantam qualquer leigo numa interpretação onde modificam claramente a sua personalidade e desdobram facilmente em elementos do sexo oposto. Trata-se de um trabalho de construção de personagem que, atravessando a maioria do elenco, orgulharia qualquer Stanislavski.

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Finda a cena cortesã, não é intervalo. A clássica cortina vermelha, fechada durante longos minutos, sobe e encontramos um paraíso diante de nós – mais um. O invejável palco da sala lisboeta enche-se de verde, as personagens passeiam entre árvores que se imaginam num efeito de luzes bem conseguido. Um animal ou outro espreita por trás do cenário simples e contemporâneo, o texto torna-se mais acessível à medida que nos integramos na liberdade que o cenário invoca.

Há um jardim chamado Arden, para onde todos fogem. Uns exilados, outros em busca de uma liberdade que acreditam existir. Aí, os ‘civilizados’ deparam-se com os livres e os educados unem-se com pastores. Alguns apaixonam-se, outros procuram o seu amor. Exilados ou fugitivos de um local onde prevalece a lei do mais forte e poderoso, vivem juntos “uma espécie de quebra-cabeças amoroso cuja resolução é difícil de prever”. Talvez a inocência do Homem, que acredita tudo ser possível, seja uma canção que intervala a verdade comprovada que “todo o mundo é um palco”, numa infinita peça de teatro na qual somos sempre protagonistas.

Como se isto não bastasse, Álvaro Correia decide embelezar ainda mais a ação dramatúrgica com a música ao vivo de Hugo Franco, ator e músico da Comuna que já nos habituou à sua versatilidade. Com uma guitarra apenas, juntamente com um coro afinado de vozes e assobios harmoniosos, o ambiente verdejante torna-se celestial. Hugo Franco consegue transmitir-nos, com vocabulário clássico, algum “don’t worry, be happy”, perfeitamente enquadrado no quadro teatral.

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Embora passadas uma hora e meia, chegamos de repente ao intervalo e quase se ouvem suspiros depois de suster a respiração durante a visita à liberdade dos corpos, ao confronto entre o erudito e o camponês, ao amor físico ou platónico. É intervalo e o campo enche-se de mais verde, com nuvens a cobrir parte do palco. Cada vez mais perto do céu, enquanto a primavera chega – ao palco e a nós.

É desta forma que se faz uma viagem à comédia de Shakespeare, nunca o desprezando ou mesmo simplificando. Talvez a complexidade a ele associada seja apenas um disfarce para o pensamento universal e Álvaro soube mostrar isso muito bem. Não é preciso muito para se fazer Shakespeare – basta contar com uma boa equipa. Termina o espetáculo e, num ambiente festivo, celebra-se o matrimónio entre Portugal e Inglaterra, sempre tão desejado e ao mesmo tempo tão distante e dá-se a união entre o protocolo e o natural. Afinal de contas, somos nós que encenamos o nosso jogo teatral.

“Ora, vinde!”, portugueses. Shakespeare chama, o teatro também. Estejam “à vontade” para aplaudir de 21 de março a 14 de abril este espetáculo. Eles merecem – e nós também.

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Redigido em parceria com Joana Andrade

Fotografias de Joana Leão