O Ritz Clube, em Lisboa, foi novamente palco de uma noite para recordar. Os Pontos Negros tinham feito a promessa de que este seria o seu maior concerto de sempre. No espaço de aproximadamente uma hora e meia, foram capazes de tocar 24 temas.
Apesar da esfera de entusiasmo que envolvia a generalidade dos presentes, aquele auditório já conheceu dias com mais gente. Há que não esquecer também que na Praça de Espanha, àquela mesma hora, se assinalava algo de extrema importância, o que naturalmente acabou por ditar a menor afluência de público a este concerto.
Foi com Olguinha que os panos se abriram. O vigor rítmico e a destreza indispensáveis para cada uma das músicas, beneficiaram da feliz companhia de uma tela interativa na qual se projetava uma sequência de pretos e brancos em constante movimento, mostrando o poder do audiovisual. Os nossos corações também cresceram ao escutar Tudo Floresce, uma das suas várias composições impregnadas de mensagens exortatórias e sagazes. Jónatas Pires, o barbudo da guitarra, exortou também ao público que se achegasse e se uniformizasse ao máximo: «Como é que é Ritz? Vamos embora!». Era notória a satisfação naquelas caras pela oportunidade de ali irem tocar.
O inventário de letras abraça, praticamente na totalidade, um ideal de vida em que por vezes só o separatismo e o alheamento têm lugar. Casos como o de Duro de Ouvido sublinham afincadamente um certo autismo que, mesmo perante a ignorância e a ingenuidade, garante um bem-estar interior que parece sólido e intocável. Mais do que notas conciliantes, quer-se canalizar a robustez de uma ou mais convicções, todas afunilando para uma inevitabilidade: a pequenez e insuficiência humanas perante o afeiçoamento ao Deus que tolhe mas também recompensa. Esse Deus, que se escreve inequivocamente com maiúscula, é ele próprio cristalizado pelo recurso ao eufemismo, à perífrase e à analogia: uma omnipotência conseguida sem referências diretas, isto é, ironicamente, através da ausência. Não há razões para se falar em dogmatismos, até porque a forma de exposição é sugestiva e recetiva à contestação, caso contrário fechar-se-iam em casa a tocar para as paredes. Em palco, a atitude é musical, mais descontraída e não propriamente premeditada.
João Coração foi apresentado por Filipe Sousa e apossou-se do microfone para interpretar Muda que Muda. Funeral encheu a sala com uma dinâmica impressionante, onde cada um dos membros, em especial o baterista David Pires, teve oportunidade de por em evidência o seu nível técnico. Gabriela foi alvo de quase tantos apupos como a sua homónima da SIC. Este que é um dos vários títulos de canções com nomes de raparigas. Jónatas Pires explicou o fenómeno: «Questionam-nos várias vezes se fazemos isto para imitar outras bandas, mas não é verdade. Fizemos músicas sobre meninas porque elas merecem ser cantadas». Paul Simon, cantor e compositor norte-americano de música folk rock, e Diego Armés foram dois alvos de homenagem pel’Os Pontos Negros durante o concerto.
Num dia em que a cultura saiu à rua e muitos artistas também se pronunciaram contra a atual conjuntura do país, Jónatas Pires não quis perder a oportunidade de se juntar ao protesto, mesmo que fisicamente distante dele: «A próxima música é a nossa manif de hoje». Prolongamos o Sonho foi um tiro na muche, com versos fracturantes e que transparecem um sentimento que agora partilhamos quase todos: «tudo o que se constrói é para depois ser destruído».
Com um encore composto por mais cinco temas, deixaram a plateia ao rubro, embasbacada com a energia que ainda transpiravam depois de tanto tocarem. Aproveitaram aqui para fazer a habitual apresentação da banda, agradecendo pela grande festa que ali se tinha proporcionado.
Os Pontos Negros prolongaram, e bem, o sonho que foi despoletado durante a tarde de ontem na Praça de Espanha.
Fotografias gentilmente cedidas por Rita Sousa Vieira.