Cada vez mais se percebe o porquê do nome deste festival. Bons sons à tardinha, bons sons no lusco-fusco, bons sons pela noite dentro. À imagem do que se havia passado no dia anterior, neste dia 17 de agosto respirou-se uma atmosfera feita de momentos de intimismo e outros de descompressão. António Zambujo protagonizou um dos concertos que, tendo-nos saciado em absoluto, mais nos deixou insaciados. Maldita avidez da espécie.
Carlos Batista era, para muitos, um ponto de interrogação que pairava. O que pairava ainda mais era o ceticismo quanto à realização de um concerto na igreja local. Temia-se a repulsa de possíveis devotos. As guitarras, tanto a acústica quanto a alentejana, foram sempre tratadas com um apego que, ainda assim, não acanhou os ritmos desgarrados. Melodias rejuvenescidas e acordes reinventados a serem alcatifados pela solenidade e singeleza dos versos da música tradicional portuguesa. Batista, sempre consciente da delicadeza e vulnerabilidade a que uma prestação levada a cabo num espaço sagrado implica, procurou apresentar-nos um repertório discernido e bem arquitetado. Sempre que se pressentia a pisadela do risco, lá apresentava as suas mais sinceras desculpas e voltava a resguardar-se na carapaça invisível. Conseguiu enamorar-se com o público que permaneceu até final e solicitou um bis. Parabéns à iniciativa da Música Portuguesa A Gostar Dela Própria.
Foi de Beja que veio a grande surpresa do dia, António Zambujo. Sentia-se, a alguns minutos do início, a impaciência da plateia. Pela capacidade de envolvimento, pelo espírito recetível e terno e pela voz afagada, António Zambujo suscitou um entusiasmo generalizado do outro lado do palco. Como é costume neste Palco Giacometti, o público assiste sentado aos concertos. Foi precisamente assim que começámos, atentos e a segurar os queixos para não baterem no chão. No entanto, como o espaço encolhia a olhos vistos, pediu-se que nos levantássemos para caber mais gente. A dada altura, ouviu-se da plateia que “o que é nacional é bom“. Ele justificou-o de forma exímia. Por vezes quase desconfortável com a amabilidade oriunda da parte dos presentes, soube sempre responder exemplarmente, sem perder o comedimento e a humildade que foi desvendando com sorrisos nada amarelos. Parecia não compreender o porquê de aquele recinto estar preenchido. Por isso mesmo, não queria virar costas, tanto que, não se fez difícil para tocar alguns dos temas que lhe pediam. Lambreta, Flagrante e Zorro eram bem conhecidos do público. Num emaranhado de atrevimento, platonismos, relatos na primeira pessoa, trouxe-nos o seu fado que não é fado, a sua nostalgia que não é idílica e a sua nobreza que não é sobranceira. Babámo-nos mediante as rimas consecutivas, os jogos de palavras e sons em aliteração. “Onde é que nós tínhamos a cabeça” quando desconhecíamos este senhor? O Alentejo tem destas coisas.
Linda Martini? Porque não! Mas se a noite acabasse aqui eu já ficava refastelado. Fomos. Já era esperada enchente. Era esperado também que fosse um dos momentos mais eletrizantes destes quatro dias de Festival Bons Sons 2012. A lenha foi se atirando para o coração do público, onde o suor teve luz verde para passar. Eram os loucos, os endiabrados e os mal-criados a suscitar os empurrões que a uns orgulham e a outros perturbam. Mas os loucos, e os endiabrados e os mal-criados eram mais que as mães e não deixaram esmorecer um espetáculo onde as baquetas irrequietas de Hélio Morais, a par das cordas serradas a pente fino (ou palheta fina), levaram ao arrebatamento. Belarmino, Cem Metros Sereia e o mais antigo tema da banda (com 10 anos) Amor Combate singraram no meio da multidão que os entoou cá do fundo.
The Legendary Tigerman ainda conseguiu surpreender, quando já se pensava que a fasquia não podia subir mais. Qual humano com dezenas de tentáculos, este autor de blues encaixados na perfeição no rock & roll no seu estado mais puro! Assinalável a capacidade para executar com igual excelência e em simultâneo as mais variadas escalas, as vocalizações errantes e em devaneio constante, as pulsações velozes do bombo e da tarola.
Estes PAUS de dois bicos já foram mais convincentes. O mérito e a qualidade não se lhes nega. Mas, a tendência para a mesmice é real. Tentar ultrapassar isso com lengalengas e versos em capicua é o lado do pau que se dispensa. Foram salvos pelo sentido de oportunidade e candidez de Quim Albergaria.
Assim foi este segundo dia em Cem Soldos, onde continuamos a gozar de prerrogativas sem igual. Louve-se, até mais ver, a hospitalidade glamorosa desta população.