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Heróis de Outrora, Heróis de Agora: Su Qi-Er – A Lenda

Wuxia é um género literário e cinematográfico que mistura fantasia e artes marciais. Wu significa “marcial” ou “militar” e xia, significa “honrado” ou “herói”. Com uma origem que se perde no tempo, as histórias Wuxia contam as lendas de guerreiros de artes marciais, que com um grande sentido de honra, muito estudo e supressão dos seus próprios sentimentos em nome de um bem superior, conseguem ultrapassar todas as adversidades. Heróis de Outrora, Heróis de Agora é uma retrospectiva cinematográfica de como o século XXI (2000-2010), foi repescar estas estórias milenares e as actualizou aos dias de hoje, sem desprezar os seus antigos valores.

Su Qi-Er – A Lenda é um hibrido wuxia com o filme totalmente vocacionado para a demonstração de artes marciais ou wushu. A época não corresponde à dos épicos wuxia tradicionais, no entanto, a fita retém as características do herói do género: honrado, solitário, versado na arte da luta e desapossado de glórias anteriores. A narrativa vai beber à lenda do Mendigo Su, um dos Dez Tigres de Cantão, os dez artistas de artes marciais considerados os melhores lutadores do sul da China durante o final da dinastia Qing (1644–1912). O Mendigo Su era conhecido pela sua técnica Zui Quan ou o Punho Alcoolizado. O Zui Quan envolve um conjunto de técnicas, formas e filosofia de vida que simulam os momentos de um bêbado. Na verdade o lutador não se encontra bêbado apesar da fluidez de movimentos tão característica. Esta técnica permite enganar o mais incauto que julga o lutador bêbado e, por isso, incapaz. Representa um dos estilos mais complicados de emular de wushu. No entanto, as encarnações cinematográficas da lenda tendem a apresentar Su como um verdadeiro alcoólico.

Su Qi-Er – A Lenda não é a primeira adaptação da lenda cujas encarnações anteriores incluem o papel principal em The King of Beggars, de 1992, e Drunken Master e The legend of the Drunken Master, ambos com Jackie Chan no qual a personagem é meramente secundária.

Su Qi-Er – A Lenda toma bastantes liberdades artísticas sobre a vida do Mendigo Su e inicia a narração da vida desta personagem na sua época áurea. Ele (Vincent Zhao) era então um general aclamado pelos seus actos heroicos. Com o apoio dos seus guerreiros ele conduz uma operação de resgate de um príncipe das garras de bandidos. Após o salvamento, durante o qual acaba por ser deixado para trás, é dado como morto mas miraculosamente regressa ao acampamento. A sua magnífica estória de sobrevivência leva o príncipe a cobri-lo de louvores, a despeito do desagrado do seu irmão adoptivo Yuan (Andy On). Su recusa tais honras. O seu sonho é constituir família com Ying (Xun Zhou), a irmã de Yuan e criar uma escola onde possa ensinar artes marciais. Estes planos desagradam apenas a Yuan, cujo pai foi assassinado pelo pai de Su que depois adoptou a ele e à sua irmã Ying como filhos adoptivos. O seu pai dominara a técnica mortífera dos Cinco Punhos Venenosos e enveredara pelos caminhos do mal. A sua morte era um mal necessário, mas Yuan não consegue esquecer esta ofensa e jura vingança. Anos depois do último encontro entre irmãos, Yuan que aperfeiçoou a técnica macabra, ataca a família de Su deixando-o como morto e rapta o sobrinho Feng. Su terá de dedicar-se mais uma vez ao wushu para se vingar de Yuan e reaver a sua família.

A película está dividida em três capítulos: o auge de Su durante o final da dinastia Qing, a sua queda e o seu reerguer como mestre de Zui Quan, durante a hegemonia estrangeira que à época condicionava a nação chinesa. E com uma tendência para o decréscimo de qualidade ao longo do filme, francamente, notam-se as costuras. A transição de um épico marcial à pura luta de ringue é tudo menos fluida e é efectuada, recorrendo, aos truques que já se viram em praticamente todos os filmes de wushu.

O realizador Woo-ping Yuen, que não realizava um filme desde 2003, esteve por detrás de todos os grandes filmes de ou com cenas de artes marciais, do final do século XX e no início do novo milénio. Como coordenador de duplos ou coreógrafo, esteve envolvido em Drunken Master, Era uma vez na China, na trilogia Matrix, n’O Tigre e o Dragão, Kill Bill e muitos, muitos outros títulos. Infelizmente, a maioria dos filmes anteriormente referidos supera Su Qi-Er – A Lenda em termos de coreografia. Os puristas, fãs de wushu decerto discordarão, mas as cenas de acção são trapalhonas. As lutas serão sempre superiores ao filme mediano de artes marciais mas, para quem dirigiu Drunken Master em 1994 e, na época, não existia a tecnologia de que os estúdios usufruem actualmente, a reinterpretação da vida do Mendigo Su, é bastante deficiente. Exemplos há muitos. Logo após os créditos iniciais, a cena em que Su invade o covil dos bandidos com os seus guerreiros começa com um plano fechado que se vai afastando até se tornar um plano geral de uma torre negra, qual imitação pobre em efeito digital, da Torre de Mordor na trilogia de O Senhor dos Anéis. Seguem-se cenas de combate, em que é por demais óbvia a utilização de arame para suspender os actores no ar. Em O Tigre e o Dragão, quase que poderíamos acreditar que os actores flutuavam, de facto. Também existe uma mania pelo efeito de slow-motion. Há uma cena em particular, em que o chefe dos bandidos é socado e vemos a deslocação do seu queixo, num close-up em câmara lenta. E muito sangue cospem os vilões. Um grande contraste com as lâminas das espadas quase imaculadas.

A liderar o elenco encontra-se Vincent Zhao, um actor e mestre de wushu, versado em diversos estilos dentro do T’ai chi, que nunca replicou o sucesso de Jet Li ou Jackie Chan no estrangeiro. Em contrapartida, as capacidades dramáticas, nunca foram cruciais para um lutador de wushu poder representar. A contracenar com ele tem Xun Zhou, considerada na imprensa nacional como umas das Quatro Jovens Actrizes Dan da China, um termo que se refere à representação dos papéis principais femininos na ópera chinesa. Note-se o simbolismo desta distinção, tanto mais que em Pequim, só no final do século XIX é que as mulheres puderam finalmente representar, papel até então exclusivo a homens. Outros papéis relevantes em Su Qi-Er – A Lenda incluem Andy On como o antagonista Yuan, e Jay Chou como Deus do Wushu. Surpreendentemente, Michelle Yeoh e David Carradine num dos últimos papéis antes de falecer, que representam a ínfima parte do elenco que praticava, de facto, artes marciais, não tiveram oportunidade de brilhar nesse campo. O argumento não foi generoso para com estes actores tão especiais. Casting curioso.

Su Qi-Er – A Lenda apela mais ao conto fantástico que à narrativa dramática, apesar do melodrama impresso à vida do mestre bêbado. Su mete dó. Embora as cenas de luta sob o efeito de álcool, sejam, a intervalos, cómicas e até temos direito a um momento de b-boying (não sabia que naquela altura já praticavam breakdancing), a maioria das vezes, o efeito é desconcertante. Su deixa de ser um lutador honrado com estatuto e um tecto sobre a sua cabeça para passar a ser um mendigo, incapaz de sustentar um filho menor e cujo amor reside no fundo de uma garrafa de vinho. Ying é a sua salvação. Uma mulher forte de aspecto tão frágil como uma flor, que o apoia em todas as decisões. Isto, enquanto Su é um homem forte física e mentalmente. Quando ele inicia uma espiral descendente, resultado de falta de amor-próprio e demasiado vinho, torna-se triste assistir ao ar complacente de Ying.

Mas a grande falha em Su Qi-Er – A Lenda é o último capítulo que resulta da recriação de todos os vícios e encenações de filmes anteriores. Há por demais, alusões a A Coragem do Guerreiro e a Ip Man. Neste último, temos igualmente direito a um evento de todos contra um e a um antagonista estrangeiro demolidor. Todas as recriações de Su Qi-Er – A Lenda, por si só, inferiores, ocorrem num cenário de efeitos especiais demasiado frequentes e de fraca qualidade. A utilização sistemática do ecrã verde para o décor e paisagens “ofegantes”, assim como a sobre edição das cenas de combate não só retiram credibilidade a uma estória de si fantástica como a tornam anedóctica. É pois, um esforço pouco digno do realizador tão experiente e do seu elenco. Su Qi-Er – A Lenda torna-se uma experiência desconfortável, pelo fraco aproveitamento do talento que conseguiu juntar, e fugaz, pois não existe realmente nada que valha a pena reter desta película.

4/10


Ficha Técnica
Título Original: Su Qi-Er
Realizador: Woo-ping Yuen
Argumentista: Chi-long To
Elenco: Vincent Zhao, Andy On, Xun Zhou , Jay Chou, Michelle Yeoh, David Carradine e Xiaodong Guo
Género: Acção, Drama
Duração: 115 minutos

*Por opção da autora, este artigo foi escrito segundo as normas do Acordo Ortográfico de 1945.