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Captura de ecrã - 2011-12-23, 16

Os espelhos da música portuguesa

Um tom encarnado cobre o cenário. Pedro Jóia afina a guitarra portuguesa, faz-se silêncio na sala. “Isto hoje é só experiências“, sorri António Zambujo. Mais um dueto inédito, o último de uma noite bem recheada deles. Quase três horas de grande miscelânea e emoção fizeram as delícias do público do CCB, numa gala solidária a puxar para o natalícia. Narciso certamente não acharia feio!

Mais do que um espectáculo, um encontro de amigos, um concerto verdadeiramente intimista, na primeira noite de Inverno no Centro Cultural de Belém. A dois dias no Natal, não poderia haver melhor prenda antecipada. Não é todos os dias que sete excelentes músicos lusófonos se juntam em palco e levam as suas bandas para uma festa da música portuguesa, ainda por mais com a intenção solidária de ajudar a associação BIPP.

A convite da produtora de espectáculos Espelho de Cultura, o Grande Auditório recebeu então o guitarrista Pedro Jóia, a fadista Raquel Tavares, o casal brasileiro Couple Coffee, composto por Luanda Cozetti e Norton Daiello, o músico António Zambujo e a sua banda, o compositor e artista JP Simões e ainda o Trio de Afonso Pais. A cumplicidade entre eles é tamanha que imaginei logo uma ceia pós-espectáculo, os músicos todos reunidos num qualquer café a conversar sobre a maravilhosa noite.

Um longo solo de Pedro Jóia abre a gala, pouco depois das 21 horas. É um exímio guitarrista, de uma mestria impressionante, na sua guitarra portuguesa que parece tocar e cantar ao mesmo tempo. Quando a voz de Raquel Tavares se junta ao instrumento, o fado envolve o auditório, bem como uma imensidão de novas sonoridades. Entra em palco elegante, simpática, bonita, com uma boa disposição contagiante. Interage com o público, colocando-o à vontade, explicitando os propósitos do espectáculo.

Não é habitual ver uma fadista a tocar guitarra, mas Raquel Tavares toca e canta sozinha em palco, como se tudo ali lhe pertencesse. A afinação é perfeita e adapta-se a qualquer género musical, em parceria com qualquer um dos cantores presentes. A verdade é que a que muitos chamam de Severa do século XXI é bem mais que isso: do flamenco da espanhola Volver Volver à música brasileira, a fadista tradicional é capaz de tudo. O dueto com Luanda Cozetti foi um dos momentos altos da noite, duas vozes tão diferentes que combinam, afinal, na perfeição.

Muito há para dizer sobre a excêntrica Luanda, uma mulher com uma energia inesgotável e uma simpatia que se transforma frequentemente em alegria e humor. Veste um vestido azul e sapatos altos vermelhos, qual Luanda redshoes, brasileira com “uma costela portuguesa”. O marido Norton Daiello toca e é o seu braço direito nos Couple Coffee, mas é ela quem se destaca, pela voz poderosa, por até ter cantado fado nesta noite bem portuguesa.

Sempre brincalhona, partilha com o público que as ‘meninas’ desta trupe estão muito contentes com os ‘meninos’, muito bem parecidos e todos eles excelentes músicos. Brinca com a palheta cor-de-rosa de Afonso Pais, que chama ao palco, e com as suas meias coloridas. Conta que os ensaios para o concerto decorreram ao longo da semana na sua casa, num ambiente de grande cumplicidade com o público também, que vai sorrindo nos pequenos intervalos entre canções.

httpv://youtu.be/AlnxzIS8a4s

Afonso Pais oferece ao espectáculo o belo som da sua guitarra, mas também um maravilhoso toque de bossa nova, introduzido pela bateria e pelo contrabaixo da sua banda. Quem diz que música instrumental não tem alma e que a letra das músicas faz falta, tem muito que descobrir. Tímido, de poucas palavras, foi tocando com os presentes, sem nunca cumprir o esperado, que seria juntar-se a JP Simões.

O interessante deste espectáculo é exactamente ter trazido tudo de novo, ou seja, não ter feito nada que fosse expectável. E o momento alto desta unicidade foi o dueto de António Zambujo com JP Simões, inesperado, sobretudo, dada a diferença de vozes e o facto de ter cantado na vez de e uma mulher, Roberta Sá, brasileira que já cantou com o alentejano.

António Zambujo é sempre igual a si próprio: simples, meio desajeitado, de sorriso amável, casual na maneira de vestir. E uma voz de rouxinol maravilhosa, mais natural que a sua voz falada. O cavaquinho da banda confere às músicas um som diferente, meio africano, ajudando a caracterizá-lo como world music. Canta a belíssima Zorro e a parceria com Raquel Tavares em Para que Quero Eu Olhos é um dos momentos que ficam na memória da noite. A música que pôs a fadista a chorar na primeira vez que a ouviu.

O “xor Simões”, como lhe chamou Zambujo após tecer grandes elogios ao seu trabalho como compositor, foi o último a surgir em palco. Primeiro Ela Vem e Vai, depois uma música sobre o desgosto do amor, com Norton na guitarra. Acabou por desiludir um pouco, por não ter mostrado a sua voz poderosa, mas compensou no dueto com Luanda Cozetti, (improvável por não ser em Se Por Acaso!) – as suas vozes combinam tão bem e a alegria dela levou a um agradável momento teatral.

httpv://youtu.be/L36ZpH1LLYQ

Tratou-se de uma verdadeira gala de Natal, com o que de melhor se faz na música portuguesa e em Portugal. Aplaudiu-se a elevação do Fado a Património da Humanidade, que na opinião de Luandajá o era há muito tempo”, e concentrou-se num só espectáculo uma grande diversidade de géneros: para além do fado, o samba, o jazz, a bossa nova, o flamenco, o pop lusófono, a música popular brasileira.

Entre os sete e as suas bandas, nunca faltou dinamismo ao concerto. Teve quase três horas, mas podia ter tido outras três que certamente não sairíamos do lugar. E que orgulho é ver reflectido no palco o talento nacional, tão reconhecido lá fora, mas que cá dentro parecemos, por vezes, reconhecer tão pouco. Que o diga a plateia vazia à hora do espectáculo, que permitiu ao público de balcões e galerias a descida até aos lugares mais próximos do palco. Este sim, é o espelho de um país que não dá o devido valor à boa música em português e à solidariedade, nem em época natalícia.

Importa é que eram poucos, mas interessados, a aplaudir com emoção a emoção que também se deu ao nível do palco. “É que Narciso acha feio o que não é espelho”, dizia Caetano Veloso na expressão que deu título a esta gala. Por vezes, o que não é espelho, o que não é propriamente semelhante, também pode ser bem bonito. E foi o que aconteceu no CCB: uma série de músicos com diversas vozes e sonoridades a mostrar que a mistura de sons e sensações pode resultar muito bem, se houver talento, amizade e intimidade a uni-los. Uma série de diferentes espelhos da música portuguesa. Mais bonito não podia ter sido.

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