Auscultadores nos ouvidos, microfone ligado, texto e imagens à frente. O actor está sozinho em estúdio, lê o guião e mal tem oportunidade de ensaiar. Cada fala é cuidadosamente entoada de modo a coincidir com a voz original e com a boca da personagem. Mas não é tão simples quanto parece: é sempre um desafio para um actor tentar transmitir sentimentos utilizando apenas a voz.
Há dezassete anos que se dobram filmes de animação em português europeu. Tudo começou quando “surgiu a oportunidade de fazer a dobragem do filme de animação da Disney, O Rei Leão”, afirma Carlos Freixo. O actor e director de dobragens, actualmente nos Estúdios da Matinha, em Lisboa, acrescenta que “era uma aposta arriscada, visto que até aí recebíamos a versão brasileira e pensava-se que as pessoas estavam tão habituadas ao português do Brasil que seria difícil aceitar uma versão no ‘nosso’ português”.
Foi uma aposta ganha: “A versão portuguesa foi considerada a segunda melhor a nível mundial. O processo de selecção de vozes foi complicado mas, graças à utilização de alguns dos nossos melhores actores, deu óptimos resultados”, diz Carlos Freixo. Em 1994, O Rei Leão torna-se então a primeira longa-metragem de animação dobrada em português, na qual Carlos Freixo dá voz a Simba, uma das personagens que mais gosto lhe deu fazer, juntamente com actores como Rogério Samora, Fernando Luís, José Raposo e Cláudia Cadima. E não se voltaram a lançar, no nosso país, filmes dobrados em português do Brasil.
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As dobragens remontam, no entanto, aos anos 30 do século XX, quando o cinema português as começou a utilizar. Mais tarde, é a vez da televisão e Carlos Freixo entra na profissão em 1985, “dirigido pelo João Lourenço, seguindo-se o João Perry, o António Montez e o António Feio”. Dobravam-se apenas “séries de desenhos animados para televisão, principalmente japonesas”, acrescenta. Na altura só existia a RTP, “razão pela qual o mercado era muito limitado e, por consequência, fechado”, o que veio a alterar-se com a abertura das televisões privadas em 1992/1993. Surgem novos estúdios de dobragem, onde se começam a dobrar produções para a SIC e TVI.
Por esta altura nascia Filipa Maló, que se tornou conhecida no mundo televisivo através da série Super Pai, da TVI. Começou a dobrar há onze anos, quando tinha apenas oito, participando no filme Dinossauro, da Disney, como Suri: “fui chamada para fazer um casting porque me conheciam da televisão”, diz. A partir daí dobrou, entre outros, E.T., Lilo & Stitch, A Viagem de Chihiro, Pacha e o Imperador 2 e Harry Potter.
Como é dobrar um filme de animação?
O casting é o início de todo o processo de dobragem, que pode demorar entre três e quatro meses e envolve as fases de selecção do elenco, tradução/reescrita do guião, estudo das falas e gravação. “Cada actor é chamado para um casting que posteriormente é enviado para os responsáveis (internacionais) pelo filme, para ver qual das vozes preferem para cada personagem”, afirma Filipa Maló. É enviado “um mínimo de 3 vozes por personagem”, acrescenta Carlos Freixo, e “todas as ‘majors’, Disney, Dreamworks, Fox, Warner etc. controlam os castings em Los Angeles”.
Ao ser escolhido, um actor é levado para o estúdio de gravação, observa “a personagem a falar com a voz original, sensivelmente uma vez ou duas vezes”, e fala “exactamente por cima da voz da personagem”, explica a actriz e dobradora. O que torna as dobragens mais complicadas é a coordenação necessária entre a voz e a expressão facial e corporal da personagem animada, avisa Filipa: “temos que ter em atenção não dizer por exemplo um ‘o’ quando a boca da personagem está muito aberta”.
A gravação das vozes, em si, leva duas a três semanas, “exceptuando as canções”, declara o actor e director de dobragens. Filipa Maló tem experiência a dobrar canções e considera que “é mais fácil cantar do que falar, pois normalmente não temos que ter em atenção a boca da personagem”. Quanto à necessidade de semelhança entre as vozes original e dobrada, “as vozes têm de se assemelhar ao original mas há muito espaço para a criatividade”, segundo Carlos Freixo. O dobrador português apenas tem de manter ou aperfeiçoar o ritmo e personalidade da voz original.
Mas dobrar um filme de animação tem outras dificuldades, como a unicidade da expressão oral. Para Filipa Maló, “é mais difícil fazer uma dobragem do que representar, porque temos de tentar passar sentimentos através da voz”. Enquanto em televisão e no teatro se utiliza a expressão facial como forma de mostrar o que se sente, “numa dobragem isso não é possível”. É por isso fundamental que os dobradores sejam bons actores – como explica o experiente Carlos Freixo, “para além da qualidade de interpretação, o actor, para ser um bom dobrador, tem de ter um enorme sentido musical e de ritmo”.
Para além de tudo isto, não existe uma grande liberdade para improvisar nas dobragens, “a não ser que os actores sejam muito experientes, tenham ideias para palavras que liguem melhor com a boca da personagem e as discutam com os directores”, explica Filipa Maló. Já os directores de dobragens, tal como os directores vocais – encarregues das canções –, têm um certo espaço de manobra para inovar, sendo por vezes necessário encurtar frases ou alterar palavras que não estejam em sincronia com as imagens. “Não nos podemos esquecer que a personagem está a falar inglês”, ou qualquer outra língua estrangeira, relembra Filipa.
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Enquanto director de dobragens, responsável pela adaptação do guião à dobragem portuguesa, Carlos Freixo experiencia esta outra faceta das dobragens – a adaptação dos textos –, considerando-a “um trabalho difícil mas muito gratificante”. Destaca a “oportunidade de trabalhar com alguns dos melhores actores portugueses” e a dificuldade de se dirigir a si mesmo, processo que é mais demorado, “pois tenho de ouvir tudo o que faço várias vezes e pôr-me no papel de espectador, sendo às vezes muito mais crítico com a minha própria interpretação”.
Como um trabalho desafiante, divertido e gratificante que pode ser, é normal haver personagens com as quais os actores se identificam mais e que gostam mais de dobrar. Marcam-nos, por exemplo, os filmes de animação que não são em inglês: “A Viagem de Chihiro era um filme japonês diferente de tudo aquilo que estava habituada, nomeadamente filmes e séries da Disney”, afirma Filipa Maló.
Lilo, de Lilo & Stitch, é uma das suas personagens favoritas, tanto no filme de 2002 como na série televisiva, uma dobragem que demorou muito tempo. “Adorei ser a sua voz portuguesa”, diz Filipa. Tem inclusive uma história curiosa com a “boneca”, que conta entre risos: “numa cena do filme, em que o Stitch aparentemente morria, a Lilo chorava e eu, como estava tão dentro da história, desatei a chorar e fiz essa parte toda a chorar de verdade”.
A dobragem em Portugal na actualidade
De acordo com dados fornecidos pela Divisão de Estudos e Estatística do Instituto do Cinema e do Audiovisual, doze filmes de animação com dobragem em português foram lançados em 2010, o mesmo número que em 2009. Não é um número elevado, pois não existe, no nosso país, uma tradição de dobragens como em Espanha, Itália, ou Alemanha. Como explica Carlos Freixo, “estamos ainda no começo, limitando-nos praticamente aos produtos infanto-juvenis”, aos filmes e séries de animação ou para crianças. A legendagem assume ainda uma importância primordial na indústria.
Daí que nem sempre os dobradores consigam arranjar trabalho. O último filme que Filipa Maló dobrou foi Como Treinares o teu Dragão, há cerca de um ano e meio, num casting em que nem esperava ser escolhida, por a sua voz ser “completamente o oposto da original”. Acabou por dar voz a Brutália, mas desde aí não tem feito nada. No entanto, “se aparecer alguma coisa farei com todo o gosto”. Já Carlos Freixo, dobrou este ano Carros 2 e encontra-se a dobrar, neste momento, “o filme Os Marretas e a série Phineas e Ferb”, na Matinha Estúdios Som.
Se são poucos os filmes de animação dobrados em português a chegar aos cinemas nacionais pela primeira vez, as reedições vão preenchendo o mapa de estreias, de quando a quando. Agora é a vez d’ O Rei Leão sucumbir à magia do 3D e ser relançado em Portugal, no próximo dia 22 de Dezembro. O dobrador de Simba, que também dá voz ao Pateta e ao Tigre do Winnie the Pooh, afirma que vai “esperar para ver mas, visto não ter sido concebido para 3D, tenho as minhas dúvidas” quando a este ‘novo’ Rei Leão.