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Ken Grande

Rothko ou o ensaio sobre a arte

“Diz-me o que vês? Diz-me o que sentes? Diz-me o que eles te fazem sentir?”, estas são as três principais questões que o pintor russo Mark Rothko coloca ao seu assistente recém-contratado e ,através delas, inicia uma reflexão profunda sobre a essência da arte e do artista.

A peça de teatro do norte-americano John Logan, Vermelho, explora não só os dois anos de trabalho do artista de origem judaica Rothko com o seu jovem assistente Ken, mas também realiza um ensaio sobre a arte, aprofundando a relação entre o mestre e o seu discípulo.

Inicialmente, o pintor trata o seu novo colaborador com um cauteloso distanciamento, receando dar alguma centelha do seu conhecimento artístico. Porém, a sua curiosidade e constante interrogatório ao assistente, permitem-no criar uma relação mais próxima e quebrar as barreiras tanto impostas.

Analisando as opiniões de Ken, Rothko coloca-se na posição de professor e começa a ensinar ao seu novo pupilo os princípios de arte, assumindo ser o portador da verdade sobre a área em que trabalha.

Na peça conseguimos observar a maturidade do reconhecido pintor Rothko em relação ao novo assistente, que pouco sabe sobre os antepassados artísticos e sobre filosofia. “Se não os compreendes, mantem-te no silêncio” critica Rothko, quando o assistente tenta opinar acerca de grandes nomes do mundo das artes.

Teimoso e incontestado, o pintor impõe as suas ideias com veemência e Ken, que inicialmente não se opunha, começa a pôr em causa as afirmações tidas por Rothko como verdades inquestionáveis.

“Os filhos suplantam os pais, respeitam-nos mas matam-nos” afirma Rothko, que vê perante os seus olhos, o assistente obediente a rebelar-se contra os princípios incongruentes do seu mestre.

Segundo Ken, a encomenda milionária do restaurante Four Seasons torna-se pouco compatível com a doutrina que Rothko defende. O pintor, que sempre se insurgira contra a falsa burguesia e as catedrais do consumo, tinha se rendido à fama e aos bens materiais, colocando as suas telas imaculadas num ambiente corrompido e indigno de contemplação artística. “Vou transformar o restaurante quatro estações num templo” dizia, enquanto tentava esconder as verdadeiras intenções que o levaram a aceitar o contrato.

Outros temas debatidos na peça, interessantes no ponto de vista histórico, foram a rivalidade de Rothko com Pollock, seu contemporâneo, e o confronto entre duas gerações artísticas, nomeadamente o expressionismo abstracto e a nova Pop Art. Esta nova forma de arte é, para Rothko, cómica demais, e as suas obras não são intemporais, pois adquiriram fama pela sua futilidade, direccionada para as massas.

As interpretações sublimes de António Fonseca e João Vicente transportam-nos para os anos 50 e para o ambiente artístico daquela época. Facilmente nos apercebemos da capacidade de posicionamento em palco e da fluidez dos movimentos que os actores possuem durante toda a peça. As suas personagens contagiam-nos de tal modo, que somos capazes de nos abstrair do facto de estarmos a visualizar uma peça de teatro.

O espectador mergulha no universo de Rothko por meio do seu estúdio, que se estende para além do palco, e começa a sentir uma grande cumplicidade com a personagem que vê a arte como detentora de uma seriedade, quase sagrada, no âmbito do divino, em que cada tela é uma reprodução viva, que sente, sofre.

O público é interpelado a analisar os quadros expostos em cena, a cor e a fluidez do movimento, que pulsam e irradiam quando o espectador os observa.

A encenação está a cargo de João Lourenço, que juntamente com a dramaturgista Vera Lemos investigaram textos sobre a vida do pintor russo e descobriram a peça de John Logan, baseada em factos verídicos.

A peça, dividida em cinco actos, estreia dia 17 de Dezembro no Teatro Aberto, numa época em que a crise poderá fechar muitas portas à cultura. Apesar de não ter sido premeditada a sua selecção para este momento complicado em termos financeiros, é um bom ensinamento ver uma peça que expõe a importância da arte na vida humana.

Fotos: Sara Alves e Inês Moreira Santos