Harun Farocki foi um dos dois realizadores alvo de retrospectivas na nona edição do festival DocLisboa. Ao longo dos 11 dias de evento, foram 14 os filmes do realizador que marcaram presença. O Espalha-Factos deixa aqui a análise de três das obras do realizador alemão: Videogramme einer Revolution, Der Auftritt e Die Bewerbung.
Videogramme einer Revolution – 7/10
Videogramme eine Revolution (Videograms of a Revolution), integrado na Retrospectiva Harun Farocki, projecta o violento desabar do regime comunista romeno de Nicolae Ceauşescu – a revolução de Dezembro de 1986 – sob a óptica de registos dos media e de câmaras de vídeo amadoras. A estação televisiva de Bucareste, ocupada por manifestantes agitados, tornou-se o foco da revolução através da cobertura ininterrupta dos acontecimentos em tempo real, durante cinco dias.
O compasso histórico traçado pelos registos audiovisuais, engenhosamente organizados pelos directores Harun Farocki e Andrei Ujica, ultrapassa o domínio da historicidade documental de uma revolta política e execução de um ditador, num país oprimido de uma Europa já de si rendida ao regime democrático. Mais do que um registo documental soberbo acerca de um acontecimento estruturante do século XX, trata-se, na verdade, de uma reflexão bastante pertinente e bem conseguida acerca da natureza da relação tensional entre os media e os restantes pilares do poder da sociedade, bem como da relevância dos meios de comunicação na escrita das páginas da História.
Der Auftritt – A Apresentação – 6/10
O penúltimo dia de DocLisboa ficou marcado por sala cheia na sessão dupla dedicada a Harun Farocki. O primeiro filme da sessão, Der Auftritt, em português A Apresentação, mostra como uma agência de publicidade vende um conceito de comercialização a uma empresa de óptica que quer lançar uma nova marca no mercado.
O universo das agências de publicidade que “activam” marcas pode ser desconhecido para muitos. Alguns ainda, terão presente o glamour que séries como Mad Men nos tentam vender, mas o que Harun Farocki nos mostra é uma realidade muito mais desapaixonada.
Primeiro é importante definir a “imagem” da marca. Neste caso tratava-se de uma insígnia que devia parecer progressista, dinâmica, de confiança. Acto contínuo, um director criativo aparece-nos na linha da frente da câmara, com a fronte previamente suada, em sinal de brainstorming e os lábios frescos, pronto a disparar toda a retórica necessária. Do lado oposto, o batalhão composto por empresários de braços cruzados, os clientes, esperando silenciosamente serem convencidos.
O que se segue é uma longa e extenuante apresentação de cartões com letterings de possíveis logotipos, uns com fontes mais “sóbrias”, outros mais “femininas”, dá para perceber a ideia. Uma pausa para os empresários irem apanhar ar, e os espectadores refrescarem a atenção, e segue-se nova enxurrada de cartões, desta vez com propostas de slogans a que se juntam imagens.
A retórica pareceu deixar muitas dúvidas aos empresários que esperavam alguma ideia bombástica. Do lado do público da sala de cinema, foi também impossível conter uns bocejos, que se ouviam amiúde.
Do lado da técnica pouco ou nada o realizador tinha a acrescentar: Uma luz insípida e desinteressante sobre homens igualmente aborrecidos; meia dúzia de planos fixos só para conferir algum ritmo; e o tom monocórdico dos dois ou três intervenientes a marcarem o espaço sonoro do documentário.
Se fez jus à profissão, então por favor não se metam em publicidade. Por outro lado, é um filme que me pareceu perfeitamente justo e cru, sem grandes pormenores criativos que distraiam do que importa documentar.
Die Bewerbung – A Entrevista – 6.5/10
A fechar a sessão dupla de sábado passado contámos com Die Bewerbung (A Entrevista), um filme que foca alguns cursos de formação onde candidatos a empregos aprendem a apresentar-se convenientemente para as entrevistas.
Neste, ao contrário do que se passara com o primeiro filme da sessão, a destreza e os artifícios da realização e montagem já se fazem sentir. Apesar disso, não podemos deixar de rir perante alguma inconsciência na abordagem dos candidatos aos seus possíveis empregadores, sendo frequente apontarem como ponte forte de personalidade “alguma competência”, ou então que como defeito têm o facto de “trabalhar de mais”. É este o retrato que Harun Farocki nos apresenta da população desempregada do final dos anos 1990, composta por licenciados, ex-toxicodependentes, técnicos de nível intermédio, ou ex-estudantes que abandonaram a sua formação.
Hoje, tal como nos últimos vinte anos, permanece a questão fulcral de como nos havemos de promover numa entrevista de emprego. O filme apresenta-se transversal, quando aborda a linguagem corporal a utilizar, qual a melhor forma de nos dirigirmos ao entrevistador, a importância de olhar nos olhos, ou a melhor maneira de negociar o ordenado. A piada não deixa, contudo, de se fazer sentir. Desvirtuamos aquelas personagens pela falta de bom senso e consequentemente também a possível utilidade que o filme poderia ter, aplicado aos dias de hoje.
Este é mais um retrato de uma época que não pareceria tão longínqua a avaliar pelo escasso espaço de tempo que passou desde 1997, altura em que o filme foi realizado. A noção de uma distância crassa é-nos dada, contudo, pelo olhar de Harun Farocki sobre aquele grupo social.
Hoje somos muito mais exigentes e temos menos oportunidades de trabalho disponíveis. O progresso é um lugar estranho.
Por Hugo Mamede e Paulo Neves