“Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores.(…) Basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias (…)”
O Outono de 1922 trazia-nos o romancista da condição humana a 16 de Novembro, sendo oficialmente registado dois dias depois. A alma e a sabedoria camponesas, preenchidas pelas raízes da Azinhaga, seriam transportadas para Lisboa com apenas dois anos, em busca de melhores condições de vida. Na capital cresce, conhece, faz-se homem José de Sousa Saramago.
O serralheiro mecânico, obrigado a sê-lo pelas fracas posses económicas que o levaram a abandonar os estudos no Liceu Gil Vicente e a ingressar na Escola Industrial Afonso Domingos, transformar-se-ia num gigante literário, um gigante sem tamanho definido, do tamanho das suas palavras. Palavras que cultivou passandas inúmeras horas na Biblioteca Municipal do Palácio Galveias em Lisboa. Palavras das quais se apoderaria como nenhum outro.
O homem ousado, sábio, céptico e inconformado que dizia ‘não’ às convenções, mais uma vez diz ‘não’, desta vez à desistência. O homem que não parou levou o sonho em frente. O sonho das letras, das palavras, das linhas, das frases, das estórias. Aos 25 anos, Saramago dá ao mundo não só a sua filha Violante (fruto do casamento com Ilda Reis, que duraria até 1970) mas também o seu primeiro livro, Terra do Pecado.
“Um enjoativo cheiro a remédios adensava a atmosfera do quarto. Respirava-se com dificuldade.”. Assim começava Saramago o primeiro capítulo do seu primeiro livro. Uma leitura, utilizando a conhecida expressão de Pessoa, que primeiro se estranha e depois entranha, que é ao mesmo tempo simples e agradável e também rebuscada e cheia de significado nas entrelinhas. A obra de Saramago fala connosco como quem nos conta uma estória antes de adormecer, mas deixando-nos despertos. Misturam-se as vozes do narrador com as vozes das personagens. Saramago unifica. Saramago desmistifica. Saramago dá a conhecer.
Entre 1947 e 1966, a produção de Saramago pára porque, segundo o próprio, “nada tinha para dizer”. Esta pausa ponderada não fez parar o legado, que voltaria mais forte e diversificado. Seguiram-se os romances, os poemas, as peças teatrais, as crónicas, os contos, os diários e as memórias, clarificando um traço de versatilidade na escrita do autor ribatejano.
É com Memorial do Convento, em 1982, que Saramago chama definitivamente a atenção dos leitores e dos críticos da época. Hoje, a obra faz parte dos currículos da disciplina de Português do Ensino Secundário Nacional e é através dela que muitos jovens se iniciam no universo literário do autor, constituído por mais de 4 dezenas de títulos.
httpv://www.youtube.com/watch?v=BWXxfEg-Oq4
A luta para viver só da escrita foi árdua para Saramago, que só conseguiu alcançar tal feito ao décimo oitavo livro. Escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta, Saramago é definido por muitos como um autor controverso. Ateu e comunista convicto, não hesita em transferir as suas crenças para as suas palavras, valendo-lhe várias críticas.
Em 1992, a obra Evangelho Segundo Jesus Cristo é indicada para o Prémio Europeu de Literatura, contudo é posta fora da corrida por decisão das entidades governativas. A crítica da Igreja Católica foi também mordaz, mas Saramago sempre se mostrou aberto às críticas e delas se soube defender. O último romance publicado em vida, CAIM, foi disso um excelente exemplo.
O autor, que afirmava que “esquecer-me de Portugal seria esquecer-me do meu próprio sangue”, deixa a pátria em 1993 e muda-se para Tías, na ilha de Lanzarote, Canárias, onde vai morar com Pilar Del Río, com quem casara desde 1988.
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Galardoado com os mais diversos prémios literários, o homem que tinha a perfeita noção de que “nunca poderia ler tudo, ver tudo” recebe em 1998 o Nobel da Literatura, transformando-se no único português com tal distinção. Recebe ainda o Prémio Camões, o maior prémio literário da Língua Portuguesa. A partir daqui, se dúvidas existissem, Saramago passaria a ser um nome reconhecido imediatamente, não só em Portugal mas também no Mundo, com a tradução da sua obra para as mais diversas línguas.
httpv://www.youtube.com/watch?v=6wyj1V-aKVc
O mundo abre-se à sua obra, apodera-se dela e transforma-a. A adaptação cinematográfica da obra Ensaio Sobre a Cegueira, do brasileiro Fernando Meireles, filmada em vários locais do mundo, abriria o Festival de Cannes de 2008 e tornar-se-ia um êxito nas bilheteiras internacionais. Também em Portugal a obra foi adaptada ao cinema com Embargo, de António Ferreira, criado a partir de uma adaptação do conto Objecto Quase, de Saramago.
O ponto final da vida de José de Sousa Saramago seria colocado há exactamente um ano, no dia 18 de Junho de 2010, quando devido a uma leucemia crónica, o Nobel falece em Tías, Lanzarote. Nesse mesmo dia, toda a imprensa esqueceu o guião noticioso e não hesitou em anunciar a enorme perda literária e humana, prestando-lhe a devida homenagem.