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M. Ward: a sós com um génio

Raras foram as vezes em que se viu um palco tão cheio e imponente… com apenas uma pessoa no seu topo. Naquele que foi, muito provavelmente, um dos melhores concertos que passaram até agora pelo nosso país, Matthew Ward provou ser um dos melhores e mais únicos cantautores folk da actualidade, actuando perante uma Aula Magna a menos de metade com um poder que teria arrebatado um Pavilhão Atlântico.

A noite começou com Old Jerusalem, afatsado dos palcos já há algum tempo, num concerto que apelidou de “pré-promoção” de um disco que sairá em Setembro. Entrou em palco sozinho, apenas com uma guitarra e uma voz calma e amigável. Letras bem compostas, melodias agradáveis ainda que por vezes demasiado simples (as canções alongam-se demasiado, nalguns casos), e um estilo caricato que gera empatia com o público. Dentro do género, é um dos mais relevantes por cá, e é bom tê-lo de volta. Do que se viu, as canções novas mantêm o estilo de sempre, esperando-se com este quinto disco mais um passo na direcção certa. “Estas canções lembram todas o Verão, não lembram?”, diz já perto do final (com uma música dedicada ao senhor Ward e tudo), depois de mais uma canção calma e por vezes melancólica. “Era um pouco de ironia”, acrescenta ao ver que mais ninguém se ri. “A expressão facial não deve ter ajudado…”. Uma figura caricata, e um regresso agradável. Cá esperamos o novo disco.

As luzes nunca voltaram a acender totalmente depois da sua saída, e foi uma curta espera até M. Ward entrar em cena, já de guitarra posta, perante os aplausos dos poucos presentes. O que se seguiu foi perto de hora-e-meia da mais pura genialidade, sem artifícios nem truques, onde só o homem e a música fizeram a noite. Sozinho em palco, apenas com uma guitarra, um suporte para harmónica, e um lindíssimo piano, começou pelo medle Rag/Duet For Guitars #3, momento instrumental absolutamente impressionante, em que Ward espantou pelo controlo que tem sobre o seu instrumento e pela forma como anda pelo palco, com um olhar sisudo e forte sob o público, com uma presença absolutamente imponente. Está ali em cima, sozinho, naquele palco enorme, um dos maiores do país, e enche-o por completo com um talento imensurável.

Atirou-se depois a Chinese Translation, e se o concerto já praticamente estava ganho com aquela guitarra, ficou ganho de certeza com aquela voz. Forte, por vezes rouca, que brinca e joga na perfeição com os silêncios, as pausas… Interpretou na perfeição uma das suas canções mais conhecidas, tal como o viria a fazer com todas. A verdade é que é praticamente inútil apontar pontos altos num concerto tão consistente, onde todos os momentos foram magníficos. Poucos fazem música assim, com uma guitarra acústica tão bela, e letras sempre tão bem pensadas… e ainda menos a conseguem interpretar assim ao vivo. Quando abandona a guitarra pelo piano, impressiona mais uma vez pela forma como toca, como brinca com as teclas. Foi aí que nos deu um dos momentos mais marcantes, que certamente ficará na memória de todos: uma lindíssima cover de The Story of an Artist, de Daniel Johnston. “Alguns dizem que ele é doido… mas aposto que dizem isso em relação a muitas das pessoas mais inteligentes de Portugal” diz, sempre sisudo, sempre olhando de frente o público. As interacções foram esporádicas, mas sempre na altura certa, e feitas com aquele estilo controlado e imponente de todo o concerto. Falou em espanhol, e aquele primeiro “Obrigado” que disse, naquele tom forte e arrastado, descreveu por si só o cantautor que o disse.

Hold Time, faixa-título do seu último disco, também ao piano, foi magnífica, um pouco alongada e perfeitamente encaixada naquele instrumento. E Sad, Sad Song, já novamente na guitarra, relembra o quão bom escritor Ward é. Escreve tão bem quanto canta e interpreta em palco; no final de cada música, afasta-se para as sombras, trocando ou afinando rapidamente o instrumento. Por vezes inclina-se e sorri enquanto canta… sempre de olho no público. Nos momentos instrumentais afasta-se do microfone, e passeia-se pelo palco… mas sempre, sempre com os olhos fixos naqueles que o fixam a ele. Agarra-nos, e nunca nos larga, com o seu talento e com a sua presença.

As covers também não faltaram. Além da magnífica The Story of an Artist, tocou ainda de forma exemplar Rave On, a sua “música favorita de Buddy Holly” e, claro, transformou Let’s Dance (“Pediram-me para tocar esta, e vou tocá-la”), de Bowie, em algo que se assemelhou a uma lindíssima balada. Foi, aliás, com esta cover que terminou o corpo principal do concerto, voltando no encore com mais dois grandiosos momentos: Eyes on the Prize, em guitarra, e a arrebatadora e energética Never Had Nobody Like You, que terminou com Ward de pé, passeando pelo piano com os dedos, manuseando-o de forma (mais uma vez) impressionante. De seguida avança, recebe com as mãos unidas à frente da cara a ovação de pé que lhe fazem os poucos presentes, murmurando por várias vezes “Obrigado, muito obrigado”, e sai do palco. Com um sorriso, que só por vezes escapou ao longo da noite. Nunca pareceu antipático. Apenas… sério.

Há poucos assim. M. Ward entrou em palco e sozinho, apenas com um piano e guitarra, encheu uma Aula Magna inteira. Com momentos constantemente memoráveis, o génio do folk mostrou ser… bem, um génio. A música e o músico foram senhores absolutos de uma noite sem artifícios nem truques, onde o homem ali, nu com o seu instrumento, bastou para assinar um dos melhores concertos em muito tempo. São raros os concertos assim, espantosos apenas pela música e por quem a faz. M. Ward mostrou ao vivo ser aquilo que em disco já dava a entender: único e, simplesmente, um dos melhores. Os poucos presentes certamente não se esquecerão tão rapidamente… e os que não foram, nem sabem o que perderam. De qualquer das formas, espera-se que um regresso seja inevitável. E se houver justiça no mundo, tal regresso será perante uma sala esgotada, tão devota quanto o músico merece. Por agora, fica a honra de ter assistido a uma noite tão magnífica, e de termos estado a sós com aquele que é, sem sombra de dúvida, um génio absoluto.

Texto: Gonçalo Trindade

Fotos: Pedro Zambujo