A palavra que melhor descreveria aquilo que foi a terceira edição de Clube da Palavra ao vivo será porventura “recital”. Mas catalogar algo que tenta fugir a rótulos é ingrato. Não se trata de uma declamação infinita de poesia, não se trata de um concerto, não é hip hop, não é fado. É tudo isso, sendo ainda mais qualquer coisa.
O todo consegue ser mais que a simples soma das partes no Jardim de Inverno do Teatro S. Luiz, num ambiente descontraído, em que é possível ir ao bar a qualquer momento, em que é possível estar acidentalmente sentado ao lado de um dos protagonistas da noite. De facto não há restrições até mesmo em relação ao conceito: usar da palavra, qualquer que seja o seu veículo e usufruir das nuances e variedades intermináveis que a lusofonia nos proporciona. Tudo e todos os que usam a palavra portuguesa poderiam estar naquele palco ou na televisão, no programa homónimo do Canal Q.
A tentativa de João Pacheco de enquadrar, para iniciar, o programa e a sua génese é conseguida: o espaço concedido todas as semanas ao Clube da Palavra é sem dúvida uma “desobediência comercial televisiva durante 15 minutos” que as Produções Fictícias e a sua posição no cabo podem dar-se ao luxo de ter. E ainda bem que podem. “Óvni televisivo”, como chamou o anfitrião ao canal é, claramente, numa época da estandardização com tendência para a decadência do produto televisivo, um elogio.
O espírito do programa e da noite que se viveu tentou ser resumido numa série de imagens projectadas na sala. Demasiado e dispensável. A mescla de imagens rápidas não resumiu o programa em toda a sua virtude, apesar de fazer prova de homogeneidade de que vive. No entanto, o público restrito da sala (o que é resultado também do número limitado de lugares) não teria necessidade de ser apresentado ao programa nestas circunstâncias pelo tão simples facto de, em geral, já conhecer o programa. O fenómeno de o programa televisivo levar o público ao Teatro S. Luiz e não o contrário faz com que tal apresentação tenha sido perfeitamente dispensável e até excessiva para quem queria, acima de tudo, ver ao vivo alguns dos que trabalham a palavra.
A escolha dos artistas primou pela diversificação do género e da sonoridade da palavra, o que vai ao encontro daquilo que se pretende com o projecto: a variedade de estilos e a presença dos diversos sons que a palavra portuguesa assume quando dita em diferentes pontos do mundo. A alternância com que os protagonistas partilharam o palco só valorizou o espectáculo que não se tornou monótono.
António Poppe trouxe consigo a guitarra portuguesa, mas não o fado. Em vez disso, a sua declamação. Talvez a mais alternativa das actuações pelo seu ritmo estonteante e a sua envolvência nas palavras. Por vezes não era o seu sentido, mas a sua sonoridade que ganhava importância.
Com os Social Smokers, a história esteve em palco. A narrativa contemporânea de intervenção com cadência e musicalidade, a que poderia chamar-se hip hop, mas que é na verdade outra qualquer coisa. É a palavra falada, literalmente, com contos sobre o presente e o futuro que parece não existir e que interpelam directamente aquele que ouve pela sua ligação com a realidade comum.
Para adicionar música, JP Simões e Couple Coffee. As cordas de ambos e os ritmos a que nos habituaram realçam a cadência que há na palavra. Foram os momentos mais evasivos, menos interventivos da noite. Apesar de JP Simões ter “diabolizado”, de quando em vez, a situação em que vivemos, o que fica é sobretudo a sonoridade da sua música e das suas palavras.
A ideia que se traz do Jardim de Inverno pode ser, à primeira vista, de que há um excessivo enfoque na palavra enquanto instrumento de intervenção. Porém, o lirismo da expressão portuguesa apenas enquanto isso mesmo também esteve presente. Além de tudo, a palavra que se dispõem, em primeiro lugar, a descrever aquilo que somos, descreverá obrigatoriamente a situação em que vivemos.
O que permanece é a palavra enquanto instrumento artístico de sonoridade. António Jorge Gonçalves desenhou cenários em tempo real que raramente foram totalmente explícitos e figurativos, o que é sem dúvida pertinente. Assim como a visualidade destas imagens não tem necessariamente que ser figurativa para fazer sentido, também a oralidade e a voz não tem por vezes que significar, bastando-lhes soar.
A conclusão é de Cesariny e é repetida por todos. O mote expressa bem a razão por que o Clube da Palavra continua: “Entre nós e as palavras, nosso dever, falar.” Se todos trabalhamos a língua, se nos apossamos dela tão organicamente, se está instantaneamente em nós, o natural é chamarmo-nos palavristas, como se sugere. Sem medo de não usar aspas.