Sobe o pano, eis o cenário: tábuas de madeira percorrem o palco desorganizadamente, com pontos mais elevados, outros não. A um canto, está um clarinete a introduzir o espectáculo, preparando todo o ambiente necessário para que Maria Sem possa dar início à sua história.
As luzes, essas, revelaram-se essenciais para todo o momento de introspecção e reflexão que se tornou A Lua de Maria Sem. Vários feixes de luz verde e amarela em diferentes direcções, perdidos entre o fumo de palco, levam o espectador a acomodar-se devidamente na sua cadeira, a recostar a cabeça e a deixar-se levar pela voz serena e dicção perfeita de Maria João Luís, e o encanto dos fados de Manuela Azevedo, tão bem por ela interpretados.
“Em todas as casas há uma vela apagada e um santo atrás da porta. Hoje, não sei por que artes, o santo está em cima da cómoda com a vela acesa ao lado.”
As cores escuras dominaram o palco do S. Luiz nessa noite. Maria João Luís e Manuela Azevedo envergavam um fato e sobretudo pretos, calçando umas botas altas, igualmente pretas. A uniformização da indumentária fazia de Maria João Luís e Manuela Azevedo a mesma Maria Sem, cujo objectivo era o de colocar a “alma acima do género” (Maria João Luís em declarações ao jornal i), atribuindo um ar angelical a Maria, sem que o parecesse efectivamente. Foi assim conseguido um jogo perfeito entre a luz e o escuro, fundamental para atribuir a expressividade adequada à peça.
Da autoria de João Monge e com fados de Alfredo Marceneiro, a construção dos textos é sem dúvida algo a destacar nesta peça. Analisados como um todo, temos a história de Maria Sem, a quem o pai deixou a lua. Maria tem medo, Maria aprende a amar, Maria reza, Maria experiencia a morte, Maria vive, Maria deseja, Maria apaixona-se, Maria tem esperança, Maria Sem é tratada pelo nome. Um conjunto de pequenas histórias, autênticas metáforas, contadas como que numa loucura deliciosa, que nos transportam para a dimensão do imaginário e do sonho, como se de uma história de crianças se tratasse.
Porém, se de um modo aleatório procurarmos algo que nos inspire instantaneamente, basta que a sorte nos calhe em MARIA SEM e os mil desejos: “Doem-me os braços de tudo, mas não me dói a vontade! Não tenho abraços nem horas, nem memórias de jardim. Mas se as silvas dão amoras há-de haver alguém que espera uma flor dentro de mim…
Doem-me os braços de tudo, mas não me dói o meu nome!”
À sua já longa carreira como letrista, João Monge acresce uma estreia belíssima, ao recriar os fados de Marceneiro e construindo uma história que tão bem se encaixou nos seus temas. Cada palavra parece ter sido pensada ao detalhe, como se nenhum dos seus significados pudesse ser ignorado ou perdido.
“Anestesiado” será talvez a palavra mais apropriada para descrever a sensação que percorre o corpo e a mente do espectador que à A Lua de Maria Sem assiste. Terá, por certo, três opções (ouvir e ver é imprescindível, como será claro): concentrar-se nas palavras de Maria João, saborear a voz de Manuela Azevedo, ou experimentar da relação perfeita entre as duas. Trata-se, sem dúvida, da particularidade mais interessante desta peça: a união entre a palavra e a voz, representando a mesma personagem, numa intimidade entre a actriz e a cantora que, cada uma à sua maneira e ao seu jeito, souberam tão bem reproduzir.
A direcção musical, a cargo de José Peixoto, colocou Fernando Júdice no baixo e Filipe Dias no clarinete. Este último instrumento dá um toque diferente e mais pessoal às músicas. Num estilo autenticamente à Marceneiro, o fado é cantado com sentimento, a meia-luz, revelando a alma do verdadeiro fadista.
Nesta peça de teatro, que também é concerto, vemos duas grandes artistas, de áreas diferentes mas que andam perfeitamente de mãos dadas, darem o melhor de si e da sua arte. Trata-se de um espectáculo que reúne grande qualidade a nível visual, num cenário pensado que nos reporta aos cânones do fado cantado por Marceneiro, que fizeram revolucionar este estilo musical no século XX. Em que todos os pormenores técnicos, tanto a nível de som como de luz, se ajustam ao género que ali nos é apresentado sendo, com toda a certeza, de destacar, a maestria de quem em palco soube tão bem interpretar o seu papel.
“Já te contei que aprendi a bordar? Não por me tornar prendada
mas tão só para me rir do tempo.
Nunca se promete a uma mulher prendada alimentar os pardais
com o que nos sobra da vida. Era pecado!
Aprendi contigo que a ausência e solidão nem sempre andam de mãos dadas.
É tão estranha esta liberdade difusa, esta antecipação da vida, este amor
adiado…
Claro que daremos pão aos peixes, meu amor!”