“Finalmente Hamlet!”, escreveu Sophia de Mello Breyner Andersen no exemplar que ofereceu a Luís Miguel Cintra, quando terminou a sua tradução do clássico. Desde então que o encenador sonha levá-la a cena, concretizando-o este ano, numa co-produção que junta, pela primeira vez, o Teatro da Cornucópia e a Companhia de Teatro de Almada.
O Espalha-Factos esteve presente na estreia de Hamlet no dia 18 de setembro. A história mundialmente conhecida, da autoria de William Shakespeare, gira à volta de uma vingança encomendada pelo fantasma do pai contra o seu assassino. Fala ainda de um confronto de gerações e do conflito interior do Príncipe da Dinamarca, incapaz de reconhecer nos valores que lhe ensinaram armas que lhe sejam úteis. É, acima de tudo, um debate moral, do palco para fora do palco, numa descoberta do mundo.
A peça apresenta-se como uma versão quase integral da tragédia, uma versão que não ousa sacrificar o enredo, mas que exige a vontade do público e que, naturalmente e como já é costume, surpreende. Guilherme Gomes, um jovem ator, foi a aposta arriscada de Cintra para o papel de Hamlet, por entender os textos que diz e por nele não se descortinar qualquer sinal de cinismo. E, se é verdade que não foi irrepreensível, deve deixar-se claro a insignificância das falhas perante a fluídez, a dicção e a genuidade do príncipe que nos ofereceram. Sem vaidade nem declamações exageradas, transpareceu a naturalidade de quem respira poesia. Não há dúvida de que a tradução de Sophia possui “valores estilísticos que nos habituámos a só reconhecer” em versos, como afirma o próprio encenador.
Quem também contribuiu para a compreensão da peça foi o restante elenco e a introdução de momentos de humor que, apesar de inusitados em contexto trágico, serviu para aligeirar as quatro horas de espetáculo. O público chegou a contorcer-se para não se rir demasiado alto. Ainda assim, existiu uma ruptura entre a primeira e a segunda parte, acabando por se perder a sensação de unidade, talvez em virtude de tanto experimentalismo.
Por outro lado, o cenário, da autoria de Cristina Reis, possibilitou uma representação dinâmica, em virtude da sua versatilidade. Constituído por três planos de altura diferentes e por uma planóplia de entradas, evitou a necessidade de grandes acrobacias cénicas, recorrendo-se apenas a adereços específicos que cumpriram perfeitamente os vários propósitos de cada cena. A ruptura ocasional da quarta parede, que separa o ator da plateia, também contribuiu para o interesse dos espetadores, tentados a responder às questões colocadas.
Hamlet é mais do que um delírio artístico, uma homenagem ao autor, à tradutora e ao Príncipe da Dinamarca, que desafiou expetativas, defraudou esperanças e levou quer ao repúdio quer ao encanto divertido de quem assiste a uma peça iminentemente trágica num registo cómico.
De 3 a 17 de outubro – sextas e sábados, às 20h, quartas às 19h e domingos às 16h – ainda é possível assistir ao espetáculo no Teatro da Cornucópia. De 23 de outubro a 15 de novembro, Hamlet estará em cena no Teatro Joaquim Benite, quarta e quinta, às 20h, sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 16h.