Depois da exibição em 3D, no Cinema São Jorge, de O Último Imperador, o Espalha-Factos pôde fazer algumas perguntas ao diretor de fotografia do filme, que recebeu por este seu trabalho um Oscar, entre os três que já arrecadou ao longo da sua extensa carreira. Uma conversa no dia final da passagem por Lisboa da Festa do Cinema Italiano.
Foram 25 minutos de uma animada conversa sobre o trabalho de Vittorio Storaro e as simbologias que imaginou para tornar O Último Imperador o filme deslumbrante que, mais uma vez, o público pôde contemplar, e pela primeira vez em três dimensões. Apesar da agenda de Storaro estar preenchida, foi com simpatia que se disponibilizou a responder às simples perguntas do Espalha-Factos, proporcionando mais uma pura lição de Cinema.
Espalha-Factos (EF): Acabámos de ver O Último Imperador em 3D, e a experiência ficou ainda mais interessante com a sua apresentação, sobre as cores que utilizou para criar a maravilhosa cinematografia do filme…
Vittorio Storaro (VS): Fico contente com isso. É a primeira vez que explico a um público mais abrangente quais foram as minhas intenções na cinematografia que criei para um filme. Não costumo falar deste tipo de coisas porque possuem uma linguagem subliminar. Normalmente esse discurso das cores é feito para os estudantes e estudiosos do Cinema, mas não para um público “normal”, digamos, que se senta e que pode não captar e compreender esta informação mais técnica e restrita. Eu acho que todos os tipos de público têm como função receber as informações e as emoções que a imagem, a música e a história querem transmitir, transmissão essa que só é possível através da concretização do trabalho de todos os autores que, tal como o realizador, criam algo que está destinado a esse mesmo público, mais ou menos específico nos seus gostos.
EF: Com a sua explicação, o filme é compreendido de outra maneira, com outro fascínio. E uma coisa que eu reparei é que as cores também evidenciam a degradação ou a decadência psicológica de Pu Yi. E gostava de saber as razões para ter chegado a essa coleção de cores para representar essa figura histórica.
VS: Eu não pensei em decadência psicológica. O meu objetivo era reescrever a história de uma pessoa que faz uma viagem interior, através da sua memória, e que começa a diferenciar etapas, com os vários momentos, as emoções e os sentimentos que fazem a sua própria história de vida. E portanto, nesse sentido, as diferentes cores que usei acompanham esses momentos, essas emoções e esses sentimentos. O objetivo da Cinematografia só pode ser isso: tentar tornar visíveis certos momentos, certos aspetos psicológicos, certas emoções que, realmente, a personagem tem de transmitir ao espectador, para que ele possa compreender melhor a história que está a ver.
O conceito fundamental do filme é mesmo esse percurso, que o protagonista, devido a uma sucessão de acontecimentos, é obrigado a fazer, começando, por isso, a analisar a sua vida, recordando vários acontecimentos, os erros e as consequências dos seus atos. E na altura em que já refez todo o seu trajeto de vida, em que já reconheceu todas as etapas, então pode juntar todos os elementos e ser, por fim, um homem livre, podendo, assim, começar o primeiro capítulo de um novo livro. O meu trabalho consiste em olhar para este conceito e torna-lo visível, porque ao fazer isto, ao abrir um pouco a vida de uma pessoa, pretendi ilustrar, com as técnicas da cinematografia, através da luz e das cores, as múltiplas recordações que essa personalidade guardava dentro de si.
EF: Há um momento que eu considero fundamental no filme, que se trata da cena em que Pu Yi descobre que o filho que a sua mulher carrega não é dele, mas é fruto de uma relação com o motorista. E pareceu-me que, nesse exato momento em que ouvimos essa revelação, a cor da fotografia tornou-se, de repente, mais clara. Esse tipo de mensagem, por exemplo, não me parece ser só do aspeto biográfico, não é? Parece ter mais alguma coisa…
VS: Claro que sim. A ideia geral, o desenho ou o projeto que está previsto para o filme tem essas intenções, nesses momentos em que a luz e as cores vão também definir o aspeto psicológico da personagem. E qual é a mensagem desta cena em particular, e nos outros momentos em que isso acontece, que eu quis transmitir: tive o objetivo de fazer algo semelhante ao percurso do Sol, a um arco solar, que começa com o amanhecer, e mostra toda a jornada até ao fim do dia e da luz solar, com o por do Sol, em que começa a anoitecer. Portanto, aqui, o arco da vida de uma pessoa, ou de um Império, nesse caso, dá esta simbologia com o percurso do Sol: nasce, levanta-se, e às tantas, vai-se apagando, acabando por cair e desaparecer.
A primeira cena é já com um por do sol, e por isso, há logo aqui uma mensagem de queda do Império, porque a China encontra-se já numa fase atribulada e está a ser dominada pela força japonesa. Nessa cena em que o Imperador fala com a sua mulher, ao mesmo tempo o político japonês tenta mudar a opinião de Pu Yi sobre a Manchúria. Mas ele levanta-se e diz-lhe que não, a Manchúria irá continuar porque o regime imperial tem um herdeiro. Mas o japonês diz-lhe que eles sabem quem é o pai, e lança-lhe, quase com desprezo, o cartão com o nome do homem. E nesse momento, a luz que incide sobre as personagens apaga-se e ganha uma tonalidade cor de laranja, mais neutra. Então, a partir daí, quando o Imperador assina o documento e o japonês se levanta, há esse domínio do Japão sobre a China. E assim, a China desaparece, perdendo o poder, e ao mesmo tempo, a luz torna-se azul, acompanhando todos esses acontecimentos de ruína social.
É o fim do Imperador, porque até nas cores estamos a regressar às cores utilizadas para ilustrar as cenas iniciais do filme, que mostram a coroação desse próprio Imperador.
EF: Mas ao regressar a essas mesmas cores, e a essas cenas de abertura, também se acentua o facto de que, estando aquele sistema condenado logo à partida, no momento em que Pu Yi é coroado Imperador pela primeira vez, ele nunca conseguirá deixar de depender do mesmo. E portanto, se o sistema cai, ele também irá cair com ele…
VS: Naquele momento da coroação, ele próprio acredita que irá conseguir, e até mais quando estava na Cidade Proibida. Quando já está na Manchúria, ele volta a acreditar que poderá mudar o Império e as suas características, impedindo a sua decadência. Mas talvez seja a única pessoa a acreditar nisso (risos), porque todos os outros personagens já perceberam que Pu Yi não é mais do que um fantoche ao serviço dos japoneses. Para essa cena eu usei uns filtros cromáticos, em que a parte baixa é a cor da China, o laranja, e a parte de cima é o azul, que será o que irá acontecer, o que o espera em breve, e que irá dominar o Imperador e o seu império desfeito.
Um filme não é mais do que um esquema único, A-B-C. Mas neste esquema há elementos que compõem um sistema narrativo próprio. Há sempre esta lógica para dar mais força e peso aos acontecimentos cinematográficos e ao dito esquema: no Cinema, faz parte esta lógica, construída para realçar alguns momentos mais significativos. E com isso surgem estes outros conceitos de cores, já mais ligados à parte filosófica e subjetiva inerente à história que se quer contar. Mas com estes mecanismos, o esquema central não se perde, tal como a utilização mais formal e regular das cores.
EF: A cópia projetada hoje foi convertida para 3D, o que constitui uma novidade para este filme em particular. Acha que o seu trabalho de cinematografia pode sair mais valorizado graças a este tipo de tecnologias, ou é irrelevante?
VS: Não acrescenta nada ao trabalho cromático e de luz que foi elaborado originalmente. Dá mais valor à perspetiva e à espessura e profundidade dos objetos, criando esse jogo de falsa aproximação visual a que o espectador moderno já está habituado. O Último Imperador é um filme bidimensional. O computador é que tenta dar estas falsas sensações e extrair essa profundidade. É só uma questão técnica. Este é um 3D ótico e, por isso, não está a acrescentar nada ao filme. Mas seria diferente se o filme tivesse sido concebido de raiz mesmo para esse formato dimensional, onde aí poderia jogar melhor com esse contraste da luz e das sombras na profundidade.
EF: Última pergunta: Gostaria de voltar a trabalhar com Bernardo Bertolucci?
VS: Sim, claro (risos). Fizemos oito filmes juntos, ao longo de 25 anos. Depois o Bernardo decidiu seguir um caminho sozinho, coisa que eu não percebi muito bem. Acredito que nós os dois poderíamos ter dado mais emoções e inovações ao Cinema italiano, a nível internacional. É o realizador que escolhe a sua equipa de colaboradores, mas continuamos muito amigos, e respeito a decisão de Bertolucci, apesar de eu não ter tomado parte dessa decisão. É claro que nem tudo é mau, e depois disso, como fiquei “livre”, comecei uma relação profissional com o Carlos Saura, com quem já fiz seis filmes, e estamos agora a trabalhar no sétimo [a estrear em 2015]. Porque de outra forma, se eu tivesse continuado a trabalhar com Bertolucci, estas experiências não teriam sido possíveis, e talvez eu não pudesse ter feito outros filmes que pude concretizar. Teria sido impossível ir para o Irão durante dois anos, por exemplo, para fazer The Life of Mohammad [projeto do realizador Majid Majidi], porque nessa altura, nunca aceitava qualquer convite, sem saber se o Bernardo tinha alguma proposta. É a vida! (risos) Eu tenho de agradecer ao Bernardo Bertolucci, senão não poderia ter conhecido o Carlos Saura.
EF – Vittorio, grazie.
VS: Obrigado! (risos)
Fotografias de Andreia Martins