São tempos caricatos os que vivemos hoje. Recentemente, o nosso governo anunciou cortes no orçamento para as bolsas de investigação científica, enquanto o descrédito pelas ciências sociais e humanas, que sempre foi algo conhecido, foi há pouco tempo reforçado pelos próprios órgãos de poder com uma arrepiante clareza. Depois temos a verba para o departamento da cultura que é aquilo que já todos sabemos.
Portanto, não deixa de ser doloroso saber-se que instituições reconhecidas e de qualidade, como o Teatro da Barraca, estão a passar tempos negros e em risco de fechar devido a este mesmo desinteresse. Quem também anda a passar por alguns tempo conturbados é o já tão estabelecido Teatro da Cornucópia, uma instituição com quatro décadas de respeitada e aclamada atividade e que agora se encontra em dificuldades. É também o berço do tema deste artigo, a peça Ilusão.
São estas dificuldades e contrariedades que tornam necessária a utilização de novas estratégias, algo que o Teatro da Cornucópia está decidido a fazer com este novo trabalho, que é um exercício na adaptação (tanto no método e conceito de fazer teatro, bem como na adaptação literária da qual nasce aqui esta nova peça). Está, portanto, na hora de mergulharmos nesta Ilusão, a mais recente peça proveniente do génio criativo de Luís Miguel Cintra, aclamado encenador português.
Composta inteiramente por atores amadores de todas as faixas etárias, mais o senhor Cintra, Ilusão é essencialmente uma colagem de vários momentos da obra de Federico García Lorca, notório escritor oriundo de Granada. O que nos é apresentado é uma coleção de trechos, frases e segmentos de variados trabalhos que incluem as duas versões do diálogo que dá nome à peça, Comedia de la carbonerita, Diálogos de Sombras (um poema em prosa de 1920) ou Del amor Teatro de animale” (um poema dramático de 1919), bem como algumas cartas que o autor escreveu à família e a terceiros. É um autêntico poço de referências que surgem aqui todas conjugadas de forma divertida e veloz e se unem para representar uma temática comum: a morte.
Durante cerca de uma hora e quarenta minutos, o que aqui temos é uma amálgama de cor, música, peculiaridade e uma certa beleza doentia e estranha. Esta é definitivamente uma Ilusão divertida e bonita, que apesar de tudo nem sempre consegue ser coerente ou particularmente estimulante. No entanto, é sem dúvida um trabalho enigmático e curioso que se assume como uma pequena visita guiada ao mundo do escritor espanhol, Federico García Lorca.
Ao todo são 59 atores dispostos num palco minimalista onde descansam dois ilustres pianos cada um com o seu jarro de flores a ornamentar o tampo, simbolismo para um lar burguês. Alias, a burguesia, já se sabe, sempre foi um alvo recorrente de Lorca que faz questão de, pouco subtilmente, incluir a crítica da praxe a este extrato social da sua altura, como podemos comprovar logo nas primeiras cenas em que um recorrente Pã examina e troça das cartas de um jovem bem vestido. Ou então mais à frente, quando Gigante afirma que o burguês vê o teatro “como um sítio para ir dormir”. A conceção anti burguesa do teatro está omnipresente na sua obra e nesta peça.
No entanto, nesta montagem de Luís Miguel Cintra, mais que uma crítica aos novos ricos, a essência temática predominante é algo mais abrangente: é a relação que o Homem tem com a morte. Essa, que à porta de todos toca. A morte surge aqui como uma figura omnipresente e multifacetada, como as cinco atrizes que a representam nos fazem ver. A morte, a vida e os sonhos… tudo isto surge conjugado num espetáculo que deixa o trabalho de interpretação todo para o espetador.
Luís Miguel Cintra convida-nos a fazer uma jornada no mundo exótico e peculiar de Lorca. Num minuto estaremos a assistir a um diálogo de irmãs, no outro, a casa de um gigante está a ser invadida por sonhos que vêm para o atormentar a ele e aos seus. Tudo isto ocorre de uma forma fluída e constante em que o palco por vezes se torna numa plataforma para o desfile de um sem-número de personagens. Uma espécie de teatro rápido, cheio de cor onde há sempre algo novo a acontecer.
E depois começamos a pensar: com tanta variedade, esta Ilusão torna-se numa espécie de caixa de sortidos “Lorca“. Infelizmente não brilha particularmente em nenhuma secção ou trecho. Temos aqui um trabalho divertido e entusiasmante, com uma lindíssima trilha sonora, mas em muitas alturas, esta mistela de textos assume um registo de “tiroteio” aleatório de conteúdos, pecando em falta de coerência e contextualização. Fica também a sensação que não se aprofunda particularmente nenhum do vasto material de fonte de modo a se extrair algo muito concreto deste espetáculo. O sumo que daqui se tira é um pouco menos do que se esperava, por assim dizer.
Esta questão acaba por dificultar a vida dos espetadores não familiarizados com Lorca. Estes vão sentir-se bombardeados com tanta coisa diferente a acontecer e tão poucas referências ou guias concretos. Por outro lado, essas mesmas pessoas não vão encontrar aqui um maior esclarecimento ou aprofundamento da obra deste escritor depois de ver a peça precisamente devido a esta mesma variedade vertiginosa de conteúdos.
Dito isto, criar um trabalho dramatúrgico deste género não é de todo uma tarefa fácil e há que dar mérito a Luis Miguel Cintra e equipa por terem feito um trabalho competente e acima de tudo capaz de entreter. De parabéns, estão também todos os membros deste extenso elenco de atores oriundos dos mais diversos ramos da arte. É notório o esforço, o trabalho e a coordenação deste corpo de atores que soube, acima de tudo, dar vida ao mundo bizarro de Lorca. Juntar uma peça destas ao currículo será, sem dúvida, um pequeno orgulho.
De referir também a pequena grande estrela deste espetáculo, a música. Dotada de influências folclóricas e tradicionais espanholas, a trilha sonora não é extensa, mas é estupenda. São cantadas e tocadas três canções tradicionais, “A Nana” de Manuel de Falla (que também surge representado com outros dois solos de piano), “A Nana de Sevilha“, tema recolhido e harmonizado pelo próprio García Lorca e a “Canción de otoño en Castillha“. Os momentos musicais são de elevada qualidade e surgem em perfeita sintonia com o espetáculo. Já o cenário permanece geralmente muito minimalista, com as personagens a virem e a irem com os seus adereços que ajudam a metamorfosear constantemente o palco de modo a dar encanto a estas histórias e tramas.
Estas histórias são histórias sobre família, responsabilidade, desejos, sonhos e morte. Há um pouco para cada um de nós na obra de Lorca e este é talvez um dos maiores méritos deste espetáculo. Esta “Ilusão” é um trabalho competente e apelativo. É uma peça para todas as idades e que com certeza não deixará ninguém entediado. Por outro lado, nem sempre consegue manter um índice de fluidez e nexo contínuos e é isso que a afasta de um estatuto de “imperdível”, ainda que os seus méritos chegam perfeitamente para compensar os seus defeitos.
“Ilusão” é um trabalho curioso e bastante bonito (algo que muitas vezes disfarça o conteúdo subdesenvolvido), é um universo de universos que merece ser explorado e que encantará os apreciadores da obra do escritor espanhol, ainda que deixe os demais, um pouco “às escuras”. No entanto, em ambos os casos, será sempre uma boa escolha espreitar este novo trabalho do Teatro da Cornucópia. Mais tarde, existem sempre imensos motores de busca que possam esclarecer qualquer curiosidade acerca deste extenso universo de Lorca.
“Ilusão” estará em cena até ao próximo dia 9 de março no Teatro da Cornucópia/Teatro do Bairro Alto.