O regresso de Martin Scorsese ao grande ecrã faz-se com grande pompa e circunstância neste O Lobo de Wall Street, o filme mais longo da sua carreira, e que é um regresso às origens do realizador e aos temas que tornaram célebres alguns dos seus projetos mais famosos, como Tudo Bons Rapazes e Casino.
Esta é a história de Jordan Belfort, onde a ganância e a ambição são denominadores comum. A partir da autobiografia do próprio, acompanhamos o percurso de Belfort, que recusou valores morais e éticos para garantir a sua ascensão em Wall Street e o declínio na vida pessoal e familiar, tal como os crimes financeiros em que esteve envolvido e os grandes golpes de vigarice que criou e que lhe deram “fama” nos EUA.
Está nomeado para 5 Oscars, e infelizmente, nenhum deles reconhece o exemplar trabalho de montagem da já habitual partner de Martin Scorsese, Thelma Schoonmaker. É dos rodopios da câmara e do impacto que a edição das imagens provoca nos espectadores que encontramos uma das maiores e mais eficientes particularidades de O Lobo de Wall Street (algo semelhante à explosão cinematográfica de The Departed – Entre Inimigos), que utiliza o choque e o descontrolo das situações em que encontramos Jordan Belfort e companhia para nos oferecer um retrato muito sarcástico e cínico da América contemporânea e da alta finança.
Podia ser o terceiro capítulo de uma trilogia que, para o cineasta, nunca foi propositadamente elaborada, mas as semelhanças entre a história da ascensão e queda de Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio), acompanhado pelo seu sidekick Donnie Azoff (uma interpretação surpreendente de Jonah Hill) e as abordagens de Scorsese à vida destrutiva de um gangster (em Tudo Bons Rapazes) e aos negócios milionários da máfia no mundo do jogo (Casino). São três histórias de crime, corrupção, egoísmos e excessos, onde as personagens desempenham alegorias desconcertantes sobre os erros da sociedade americana.
Mas as parecenças entre os três filmes não se ficam só por aí, nem apenas pela estrutura do argumento (com a decadência crescente dos protagonistas em grande plano), pelo estilo da narrativa e pela linguagem utilizada (onde se inclui por muitas – talvez demasiadas – vezes a “f-word“). Há também uma desconsideração e ridicularização intencional dos protagonistas pelo mundo “real”, pela vulgaridade onde se movimentam as pessoas “desinteressantes” e entediantes. Mas nunca essa falta de respeito foi tão grandiosa e excessiva (no bom sentido) na filmografia de Scorsese como n’ O Lobo de Wall Street.
O espetador poderá sentir-se insultado, humilhado, chantageado e inferiorizado pela narração feita na primeira pessoa por Belfort, e que quebra ainda mais as barreiras entre o espectador e o ecrã do que nos anteriores filmes mencionados de Martin Scorsese (que se recordem os fabulosos momentos finais de Goodfellas, em que Henry Hill olha para a câmara e sai do seu lugar para nos falar daquilo que viria a ser a condenação pela sua vida de crime, luxúria e irresponsabilidade). O Lobo de Wall Street é também o seu trabalho mais corrosivo e potencialmente ofensivo e repugnante. Mas poucos são os cineastas deste mundo (e mais propriamente, quantos realizadores americanos) que têm a coragem de filmar uma obra destas no nosso tempo.
É uma película alucinante que nos deixa chocados, mas também entusiasmados pelo rumo dos acontecimentos, e pela constante inventividade de Scorsese que, apesar do fabuloso argumento de Terence Winter ser bastante fiel ao que Jordan Belfort conta no seu livro autobiográfico, proporciona alguns toques de originalidade na execução das cenas e em alguns truques narrativos e cinematográficos que são cozinhados com uma grande mestria. Nunca vimos Leonardo DiCaprio como aqui, numa performance que arrasa tudo e todos, e que é, talvez, a sua mais provocadora e exuberante interpretação.
Torna-se difícil saber se será este filme uma comédia sem moralismos, ou um drama que pretende disfarçar-se de peça humorística. Rimo-nos de algumas situações, pelo ridículo que transportam e pelo excesso que representam, mas não nos sentimos culpados das nossas próprias gargalhadas? Árdua esta questão, mas a máscara de farsa não esconde as intenções que Scorsese quer passar, e a constante obsessão do seu Cinema em dissecar o lado profano da espécie humana.
Jordan Belfort não é um herói e nem é retratado como tal (uma das críticas mais “populares” ao filme que têm vindo a surgir ultimamente), mas ficamos com essa ideia porque esquecemo-nos de uma coisa: sendo esta uma história egocêntrica, talvez seja óbvio o desejo do narrador em heroicizar-se e colocar-se num patamar superior em relação aos “míseros” espectadores, que seguem atentamente os seus passos sem poderem impedir o anti-herói de fazer as coisas que vemos no ecrã.
Não há nenhuma glorificação real da personalidade, mas uma glorificação irónica, que ao ser tão crua, dura e (aparentemente) verdadeira, consegue criar melhor uma visão do lado terrível da vida que Belfort e os seus colegas de “trabalho” e de boémia levam no quotidiano. Ao brincar com o argumento, Terence Winter faz com que a personagem de DiCaprio faça pouco com o espetador, gozando com a ignorância do cidadão comum em relação ao universo complexo da economia e da finança. Mas toda a vida da sua personagem é uma comédia trágica, à qual ele só pode escapar recolhendo-se na sua (disfarçada) superioridade.
O Lobo de Wall Street não precisa de ser uma obra moralista, porque todos nós sabemos qual é a mensagem ética a retirar desta história, tal como soubemos em Goodfellas e Casino. O problema é que, sendo o mais recente filme de Martin Scorsese muito mais excessivo e sumptuoso que os dois anteriores, talvez seja mais fácil para o espectador dispersar-se ainda mais, pensando sempre naquilo que o nosso bom senso nos diz, e que é posto constantemente em contradição por cada nova cena que visionamos.
A sinceridade das personagens, que sabem perfeitamente as asneiras que estão a fazer, e que pouco se importam com elas, pode ser uma afronta à honestidade e ao papel do espectador na sociedade em que está inserido, mas é esse o propósito de todo este festival anárquico e quase surreal de sexo, drogas e vigarices. A transformação rápida e incisiva de Belfort é apenas um reflexo da veloz metamorfose da humanidade, polvilhada por uma utilização massiva de canções pop, que podem ser vistas como um exercício de fraca imaginação e de vulgar e insípido sentido estético – mas talvez a sua presença não seja assim tão casual: a banalidade dos atos desprezíveis das personagens é acompanhada pela máscara de banalidade de cada tema escolhido para a banda sonora, que reflete o estado de espírito e os valores da sociedade contemporânea.
Uma lição de economia e de falsas prepotências num mundo cada vez mais manhoso e astuto, O Lobo de Wall Street é a loucura de um homem e de um sistema que come mais e mais dinheiro. Não é um manifesto político, um panfleto que expõe esta ou aquela ideologia, mas uma denúncia das falhas do Homem, o mais transformável de todos os seres. Num festim de ganância e de barbaridades sociais e éticas, onde não parecem haver limites nem bom senso, vemos as personagens moverem-se e caírem no vazio que nem a maior das quantias monetárias conseguirá encobrir.
São três horas que passam a correr, tal como os acontecimentos da fita e a perplexidade cada vez maior em que nos deixa esta história. Não é “só” um autêntico murro no estômago – é mais forte do que isso, trespassando o outro lado do nosso corpo e deixando uma marca que dificilmente poderá sair. Acompanhamos os momentos em que tudo estava bem e, como a vida nos ensina a todos que é inevitável, vemos a escalada para a ruína de Belfort. Apesar de ter alcançado o sucesso em tempos mais recentes (os seus livros são best-sellers no mundo inteiro), nunca conseguirá apagar todas as falhas gravíssimas que cometeu na sua vida, e o caos que as mesmas originaram.
E quanto mais vemos, mais arrasados ficamos com o poder das imagens do filme, e o choque chega não tanto pela carga insuportável dos (diversos) momentos hardcore, mas porque constatamos que muito daquilo que nos é contado é incrivelmente real. E onde pensamos estar a ser repetitivo e a ir pelos mesmos caminhos que as suas anteriores investidas, Scorsese sabe sempre inovar e dar a volta. Pelo choque, pela controvérsia, pelo lado selvagem e totalmente reprovável de Belfort e seus amigos.
O Lobo de Wall Street é um grito de guerra e uma acusação visceral de uma mentalidade consumista, irracional e arrogante, e um dos retratos mais animalescos da humanidade jamais feitos em Cinema, com um elenco excecional e uma fotografia deslumbrante. E foi preciso voltar aos temas de corrupção e manipulação para Martin Scorsese fazer a sua grande obra prima do século XXI.
10/10
Ficha Técnica:
Título Original: The Wolf of Wall Street
Realizadores: Martin Scorsese
Argumento: Terence Winter a partir do livro de Jordan Belfort
Elenco: Leonardo DiCaprio, Jonah Hill, Margot Robbie, Rob Reiner, Jean Dujardin, Kyle Chandler
Género: Biografia, Comédia, Crime
Duração: 179 minutos