Está em andamento a rodagem do filme Capitão Falcão, e o Espalha-Factos esteve presente num dos dias de gravações das aventuras cinematográficas do super herói do Estado Novo.
Já passa das onze da manhã quando os dois colaboradores do Espalha-Factos chegam ao Santiago Alquimista, o espaço onde decorre todo o trabalho de filmagens previsto para esse dia 27 de novembro. No meio de muita agitação, preparam-se os últimos pormenores e afinações, para que tudo funcione bem quando se começar a gravar. É aqui que se executam alguns dos maiores momentos de ação da fita realizada por João Leitão e protagonizada por Gonçalo Waddington, como o destemido Capitão Falcão, e David Chan Cordeiro, como o seu parceiro, Puto Perdiz, que enverga o uniforme da mocidade portuguesa.
Estas duas personagens formam o duo de super-heróis que defendem o país de todos os males que possam afetar a moral e os bons costumes, atuando em jeito de paródia portuguesa à dupla Batman & Robin (que “imitam” não os tons negros da trilogia do Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan mas, esclarece o realizador, “da série com o Adam West“). E no Santiago Alquimista, encontra-se um bar obscuro onde se vê toda a escória da sociedade portuguesa: desde comunistas a prostitutas, passando por feministas e liberais, estão aqui reunidos todos os verdadeiros vilões dos defensores do Estado Novo. Será que os nossos heróis conseguirão derrotar, naquele estabelecimento, tantas ameaças e, acima de tudo, o alvo mais perigoso de todos (Lenine, o Transformista Comunista, o diabólico indivíduo interpretado por Luís Vicente – uma das muitas guest stars do elenco – que consegue tornar o mais inocente cidadão luso num defensor das ideias de Marx e companhia)?
A resposta só o leitor poderá descobrir quando Capitão Falcão estrear nos cinemas, apontado para o mês de julho do próximo ano. Mas enquanto tudo está em preparação, deixamos umas pistas sobre o que aí vem: há muita – e boa! – pancadaria, diálogos hilariantes e repletos de nonsense, interpretações ridiculamente engraçadas e uma homenagem pura ao classicismo americano dos filmes e séries de super-heróis dos anos 60. O que as aventuras do Capitão Falcão parecem querer provar também é que, afinal, ainda é possível apostar em novos conceitos de comédia no Cinema português. Felizmente!
Como requer a magia do Cinema, nos bastidores apenas podemos imaginar como todo aquele esforço árduo de técnicos, ensaios e gravações resultará como produto final no grande ecrã. Naquela manhã de novembro apenas se elaboram alguns minutos de toda a fita, mas os pormenores narrativos e estilísticos utilizados e apurados repetitivamente por João Leitão e a sua vasta e notável equipa dão bem para ver o que o espectador poderá esperar nas salas. Há muito trabalho que desconhecemos ter sido feito quando estamos na sala, mas que é essencial para tudo soar o melhor possível na escuridão do ecrã de cinema e em toda a sua ilusão.
O Capitão Falcão e o seu fiel companheiro Puto Perdiz surgiram num episódio piloto de uma série que nunca chegou a existir. Numa pequena entrevista feita durante a pausa das filmagens para o almoço, David Chan Cordeiro, João Leitão e Gonçalo Waddington conversam sobre as justificações do projeto cinematográfico, o que dele poderemos esperar, e porque é que a ideia televisiva foi esquecida. “Este projeto andou a engonhar literalmente na RTP“, conta Waddington. As razões residem na própria chefia da empresa e na má gestão orçamental da televisão pública: “Só em países tão atrasados como Portugal é que temos as administrações a meterem-se na direção de programação. (…) Não têm sequer noção do dinheiro que se pode gastar“. E o protagonista do filme metaforiza até sobre a atual situação criativa e produtiva da estação generalista: “Vem um administrador das cervejas – mas que até podia ter vindo do betão – e resolve perguntar aos filhos de que séries é que eles gostam. E como o filho diz que gosta do ‘Menino Tonecas’, ele vai pedir para se produzirem vários ‘Meninos Tonecas’“.
E apesar das insistências por parte dos autores do conceito e das personagens, a série Capitão Falcão permaneceu na gaveta da RTP por dois anos e meio. Foi esta indecisão que levou João Leitão a avançar para o cinema. O único apoio externo para esta produção cinematográfica “100% autofinanciada” está patente nos direitos de distribuição para a ZON Audiovisuais , mas segundo o realizador e os atores, essa ajuda não suporta todo o custo do filme: “Temos dinheiro para fazer isto bem“, afirma João Leitão, “mas implica sacrifícios, especialmente da parte da equipa técnica e dos atores. Há uma enorme boa vontade e muita boa fé.”.
E se não pôde entrar nos lares das famílias portuguesas, o destemido Capitão vai encontrar um espaço mais abrangente num ecrã de maiores dimensões (o que até é melhor para a personagem, como constata João Leitão: “Uma série morre a partir do momento em que passa na televisão, e com um filme temos a vantagem de poder passá-lo em festivais e no circuito internacional”). Com os apoios essenciais, o projeto cinematográfico, muito mais ambicioso que o televisivo, começou a ser preparado. Os guiões previstos para os oito episódios televisivos foram reaproveitados para se fazer a história do filme que começou a ser gravado a 3 de novembro, numa rodagem com duração prevista de seis semanas.
A personagem continua a ser a mesma, e nos takes ouvem-se algumas catch phrases que fizeram parte do piloto original. A imaginação das histórias escritas para o suposto formato da RTP ganharam nova vida ao serem adaptadas por João Leitão, que pôs mãos à obra com a sua co-argumentista, Núria Leon Bernardo , para criar as situações e as novas personagens que poderemos encontrar na primeira incursão cinematográfica do Capitão Falcão (porque para o realizador, a ideia seria até concretizar uma trilogia – “mas depende a 100% do público português“, profetiza Waddington).
E como nasceu este universo que tanto tem de Cinema como de banda desenhada? A ideia surgiu na cabeça de João Leitão sem qualquer grande explicação: “Tenho um fascínio pelo Estado Novo e tenho um fascínio pelo Batman. Escrevi o episódio-piloto numa manhã e depois ficou“. Considera esta sua primeira obra “uma paródia ao Estado Novo e uma comédia parva de ação“. Mantém-se o bom humor e o espírito cómico da ideia original: “muitas piadas soltas dos episódios acabaram por saltar para o filme e ele vai ficar mais forte por isso“.
Poderemos encontrar grandes cenas de luta feitas pela equipa dos Mad Stunts, coordenados pelo seu fundador, David Chan Cordeiro, que aqui se estreia como ator de Cinema (porque antes, só tinha feito papéis de figuração e/ou ação: “Os papéis que eu represento são sempre do género ‘Capanga #3’, que até são os que me identifico mais porque envolvem ação pura. O Puto Perdiz é o meu primeiro trabalho com mais protagonismo.“). O que o motivou mais para este projeto foi o facto de ter percebido que a ação de Capitão Falcão tem um significado próprio: “As lutas têm um propósito. Não é uma luta gratuita mas é um arco. Quando as pessoas virem a história, ao verem as lutas vão perceber que há uma segunda camada. A porrada não é “só” porrada“. E a pancadaria com conteúdo é uma componente fundamental desta sátira old school, que não usa as técnicas digitais do cinema atual e que pretende homenagear a linguagem das fitas dos anos 60 e 70, com muitas influências do presente (filmes como Scott Pilgrim Contra o Mundo e séries como Green Hornet, com Bruce Lee, foram mencionados).
O cenário está muito bem elaborado e detalhado, e nele podemos ver uma grande criatividade e atenção ao pormenor e à sátira, ao criar este bar defensor do comunismo, e que tem essa ideologia espalhada por toda a parte. Desde acessórios a figurantes, passando pela formidável caracterização dos atores, a credibilidade e a graça deste set é tanta que qualquer conservador português dos anos 60 se assustaria com o clima negro e enigmático que por lá se sente.
À tarde, uma legião de fãs do Capitão Falcão invade o Santiago Alquimista, respondendo ao apelo lançado no facebook oficial da personagem. Foi pedida a ajuda de voluntários para um plano de dez segundos que precisa de muitas pessoas, para dar um maior realismo às cenas de luta que serão gravadas no dia seguinte no mesmo local. A boa disposição e a amabilidade do staff ajudam os figurantes (profissionais e amadores) a aguentarem o tempo que leva preparar a câmara e os outros elementos de gravação para se filmar o ângulo previsto no guião. Depois de terminadas as filmagens, haverá ainda muito trabalho pela frente, mas uma coisa é certa: quando o perigo ideológico aparecer, o Capitão Falcão estará lá sempre para salvar o país. Aliás, como o próprio diz no episódio-piloto, “Não se preocupe, senhor Presidente! Eu como comunistas ao pequeno almoço!“.
Fotografias por Raquel Dias da Silva