Foi numa tarde abrasadoramente quente que nos sentámos à conversa com Cláudia Guerreiro e Hélio Morais, baixo e bateria dos Linda Martini, quarteto lisboeta formado em 2003 e que conta também com André Henriques na voz e guitarra e Pedro Geraldes na guitarra. O pretexto para este encontro, que teve lugar numa acolhedora mesa na Casa Independente, em Lisboa, foi o terceiro LP de originais do grupo, Turbo Lento, com lançamento agendado para amanhã, e que marca os dez anos de carreira do grupo. Aqui fica a entrevista, para o Espalha Factos, de dois quartos dos Linda Martini, em discurso directo:
Passaram do espírito independente, herdado das raízes do punk e da ética DIY, para um contrato com a Universal, uma das maiores labels do mundo. Não têm receio de serem vistos como “vendidos” pelos fãs mais “ortodoxos” e velha guarda do grupo?
Hélio Morais: Para quem está completamente alheado da realidade do mercado da música hoje em dia, talvez possa passar essa ideia, pois sempre tivemos edições de autor ou independentes e agora temos uma edição com uma major. Mas quem conhece um bocadinho mais do mercado sabe que existem várias formas de fazer um contrato com uma editora: podes fazer um contrato de distribuição, simplesmente, em que o disco e a edição pertencem à banda e a editora limita-se a distribuir as cópias; tens o contrato de licenciamento, como no nosso caso, e aí o disco também pertence à banda e cabe-lhe a ela marcar o estúdio e tratar das gravações, chegando depois com o disco feito à editora, que por acaso está em consonância com a banda e deseja editá-lo assim; e tens a opção de venda do disco, do master, à editora, e aí sim, a label tem mais controlo criativo sobre o produto. No nosso caso, com o licenciamento, acabámos por não ceder nada. A Universal tinha interesse em editar um disco nosso e chegámos a acordo ainda antes da editora chegar sequer a ouvir o álbum. E quanto ao receio, não temos nenhum, pois fazemos as coisas em primeira instância para nós próprios, e enquanto estivermos felizes com isso não teremos receio nenhum do que as pessoas possam pensar.
Turbo Lento vem rematar uma década de Linda Martini. Este terceiro LP já sabe a consagração?
HM: O que é a consagração? (risos)
Cláudia Guerreiro: Para ser sincera, senti isso com o Casa Ocupada, que teve uma aceitação muito boa e teve muito menos críticas do que aquilo que eu estava à espera. Isso, eu já considero um tipo de consagração. Com este disco, acho que só vamos saber depois de o lançarmos, no dia 30.
HM: Até ver, sinto um reforço daquilo que aconteceu com o Casa Ocupada, o que é positivo. As pessoas podiam ficar com as expectativas defraudadas, ou algo parecido, mas não tenho sentido isso das reacções que temos tido.
CG: “Consagração” também é uma palavra um bocado forte, e seria um bocado “bazófia” da nossa parte dizermos isso. Apenas sentimos que não temos nada a provar a ninguém e que podemos fazer o nosso caminho como nos apetecer, sem estar com expectativas de manter público connosco ou trazer gente nova. Quem quiser estar connosco está, e será sempre muito bem-vinda, mas nós essencialmente estamos é muito confortáveis com o que fazemos.
Este foi um disco fácil ou difícil de gravar? Tiveram divergências sobre o rumo a seguir, os temas a abordar ou as canções a escolher para o resultado final?
HM: Não… gravar foi fácil. Há sempre questões com som que tu queres melhorar e procurar mesmo o som que te assenta melhor, ou que tu sentes que te assenta melhor. O processo de composição sim, esse foi turbulento. Foi longo, foram três anos desta vez, e são quatro pessoas que têm de ficar agradadas, ou pelo menos chegar a um consenso, e isso nunca é fácil. Mas não foi difícil no sentido de haver tensões, não foi isso.
CG: Não houve propriamente uma discussão sobre o rumo a seguir; o rumo encontra-se a si próprio. Nós começamos todos com uma ideia do que queremos fazer, mas depois as coisas acabam por acontecer naturalmente e o processo encontra um caminho.
O que é que vos inspirou para este álbum? Conseguem apontar alguma influência directa, do mundo da música e não só, que tenha transpirado para o disco?
CG: Não acho que as influências sejam diferentes das dos outros (registos), o que nos influencia é sempre aquilo que nos rodeia. O contexto é diferente e por isso a inspiração, naturalmente, também é diferente, mas não há assim nada específico…
HM: Eu acho que a única pessoa que falou em coisas específicas que ouviu para este disco foi o (Pedro) Geraldes, que ouviu muito punk mais clássico por alturas da composição. Ele disse que isso o influenciou, e de facto temos duas músicas, a Juárez e a Tamborina Fera, em que os riffs iniciais são do Pedro, e isso espelha um bocado mais essa influência. Mas na verdade ouvimos tanta coisa, já ouvimos música há tantos anos, e acho que tudo nos inspira.
Os trabalhos artísticos paralelos de alguns membros do grupo (Cláudia Guerreiro: artes plásticas; Pedro Geraldes: produção; Hélio Morais: PAUS, If Lucy Fell) tiveram alguma influência no processo criativo deste disco?
CG: Na música, não. No disco em si, naturalmente que sim. O Pedro, por exemplo, está no Porto a fazer um mestrado ligado ao som, e é claro que isso o influenciou. Ele esteve mais atento aos detalhes e a outras maneiras de fazer som. Eu, para o packaging, já tinha ideias que já tinham surgido há muito tempo, e foi natural para nós incorporá-las. Tudo isso influenciou e ajudou a criar um “pacote”, um conceito que fizesse sentido. Em relação ao Hélio…
HM: No meu caso, não… essas coisas influenciam a nível individual, na pessoa em que tu te tornas e no músico em que tu te tornas. É óbvio que quantos mais coisas diferentes tu tocares e tiveres contacto, mais isso te molda enquanto músico, tal como o dia-a-dia molda toda a gente.
Reparei que em Turbo Lento as canções e as melodias aparecem mais elaboradas e complexas que as de Casa Ocupada (2010). Esse afastamento do modelo do disco anterior aconteceu por acaso ou foi um esforço consciente? Sentiram-se tentados a repetir a “fórmula de sucesso” do segundo LP ou essa opção nunca esteve em cima da mesa?
HM: Acho que as primeiras músicas que fizemos ainda iam muito ao encontro do Casa Ocupada. Isso fez-nos pensar um bocadinho, e como já tínhamos feito um disco tão directo, todo no “red line”, não queríamos estar a repetir isso. Mas mais do que uma decisão de banda, houve uma vontade individual de mudar nesse sentido, e as coisas foram naturais…
CG: E o André (Henriques) passou também estes últimos anos a escrever mais. Normalmente, nós fazíamos a música e ele depois escrevia as coisas especificamente para as músicas, e tentava-se encaixar tudo. Desta vez, ele já tinha uma série de textos escritos, e já havia muito mais conteúdo para ir “roubar” para as músicas, o que faz com que seja normal que haja mais letra.
Apesar de manterem a intensidade de sempre, as letras de Turbo Lento parecem mais urgentes e interventivas a um nível político e social, em especial no single Ratos e em Febril (Tanto Mar). Foi intencional, essa tentativa de reflexão sobre a situação actual do país?
HM: (risos) Na Febril, está correcto. Foi inspirada na Tanto Mar (de Chico Buarque) e tem muito que ver connosco, com o 25 de Abril e naquilo que poderia ter sido e depois não foi. A Ratos já nem tanto. Por acaso, o André disse-nos há pouco que é das letras mais pessoais do disco, e os “ratos” mencionados são as pragas que cada um tem na cabeça, e que nos boicotam a nós mesmos e nos prendem a uma coisa de que não gostamos.
CG: E de facto parece haver uma certa conotação política, mas essa é a parte engraçada, porque é tudo ao nível pessoal.
HM: Mas se formos a ver bem, a política acontece num contexto social, e a sociedade é feita de pessoas. E obviamente, aquilo que nos afecta enquanto indivíduos acaba por tomar proporções alargadas dentro da sociedade. Por isso, é normal que uma coisa inicialmente pessoal também se possa aplicar num contexto social ou político. Mas respondendo à pergunta, não foi intencional; as coisas acontecem e depois influenciam-nos…
CG: E se virmos bem isso, há uma tendência em Linda Martini de falar em coisas que tu queres fazer e que não consegues, ou de contrariar a tendência de ficar preso a uma coisa. Já tínhamos isso na Cronófago e algures no Casa Ocupada também tínhamos uma letra que fala sobre isso, que por acaso agora não me lembro…
HM: Tens no Marsupial, “o fato escuro fica-nos tão bem”…
CG: Há sempre alguma coisa sobre isso, de querer mudar alguma coisa, de estarmos presos a hábitos e de sermos limitados por nós próprios, e portanto a temática não é assim tão nova e continuamos mais ou menos na mesma linha.
HM: E nesse ponto de vista, o nosso registo mais político até poderá ser o Marsupial… A Corda do Elefante Sem Corda também é sobre isso, por exemplo. Mas, lá está, são coisas que deixam sempre margem para interpretação, o que é algo que nos agrada. Numa banda de quatro pessoas onde compõem todos, e que pensam todos de maneira diferente e têm de se sentir todos confortáveis com aquilo que se escreve e que se diz, isso é o que faz sentido. As coisas nunca são histórias, não são histórias de amor do André que nós de repente temos de encaixar: isso não faria tanto sentido. Daí que tenham de ser coisas mais vagas, mais generalistas.
Pareceu-me que, em comparação com os registos anteriores, o baixo da Cláudia aparece mais proeminente na mistura. Quiseram dar um toque mais “encorpado” a este Turbo Lento?
HM: De facto, não tínhamos ficado satisfeitos com o baixo do outro disco…
CG: Nestas coisas, grava-se e depois os elementos procuram um espaço, sentimos a necessidade de meter as coisas num espaço ou noutro. Para nós, já não fazia muito sentido o baixo estar lá atrás. Sinceramente, eu acho que ele acabou por ficar grave demais (risos), e se calhar preferia que se percebesse mais aquilo que se faz, mas isso são coisas que só se percebem depois com o passar do tempo. Mas acho que se nota mais o baixo porque as próprias linhas de baixo estão um pouco diferentes, e provavelmente chamam muito mais à atenção.
Ainda sobre aspectos técnicos, o que motivou a escolha de Nelson Carvalho e dos estúdios Valentim de Carvalho para a gravação e de Andy Van Dette e dos estúdios Masterdisk para a masterização de Turbo Lento?
HM: Para a gravação, foi uma repetição. Já tínhamos gravado o Casa Ocupada lá, com o Nelson também… E foram duas razões muito simples: o estúdio em si, muito confortável e com material óptimo, que nos permitiu gravar em take directo o grosso do disco, ainda que com overdubs adicionados numa série de aspectos; e o Nelson, que é um tipo muito pacato, que consegue estabelecer um ambiente fixe de se ter em estúdio, e que faz um trabalho excelente na mistura, especialmente nas vozes e na forma de as encaixar.
CG: Na masterização, (o Andy Van Dette) é a pessoa com quem ele trabalha. Já no outro tinha sido assim, e nós confiamos.
Bem sei que perguntar isto é o mesmo que perguntar a uma mãe qual dos filhos prefere, mas quais são as vossas canções favoritas deste novo álbum?
HM: (risos) Nos outros discos, acho que responderia a isso muito mais facilmente…
CG: Eu acho que há uma música que reúne algum consenso, que é a Febril.
HM: Sim, essa é boa.
CG: A Febril é mais ou menos unânime, até porque foi a última a ser fechada, é a que está mais fresca, e acho que é a mais diferente de todas as outras e sobressai mais do conjunto. Trouxe uma frescura que faz com que seja, pelo menos, muito especial. Não sei se é a preferida…
HM: Eu acho que as duas músicas mais completas do Turbo Lento são a Juárez e a Sapatos Bravos.
CG: E depois tens a Pirâmica, que é a do arrepio.
HM: Depois na parte final tens a Tamborina Fera, que também adoramos, porque é aquele punk mesmo despretensioso, um minuto e meio de música e acabou. A Volta também é especial, porque nunca tínhamos feito nada daquele género numa canção tão curta; já tínhamos a Estuque (de Olhos de Mongol, de 2006), que vai mais ou menos na mesma linha, mas que é mais longa e tem uma parte de improviso grande, e esse ambiente nunca tinha sido fechado numa canção mais curta. Mas é muito complicado apontar uma favorita…
Estão preocupados com as reacções dos fãs à nova abordagem deste Turbo Lento? Esperam que as novas canções sejam bem recebidas nos concertos de apresentação do álbum?
HM: Eu não diria “preocupados”, diria mais que estamos curiosos. E com vontade de que gostem, também, pois nenhum artista faz as coisas só para o seu umbigo. Ou melhor, até pode fazer só para o umbigo, mas a sua motivação para continuar a trabalhar e se sentir feliz com o trabalho que faz também vem daquilo que as pessoas dizem.
CG: E a opinião do público é, pelo menos, a razão pela qual editas, não é? Podes ficar fechado no estúdio a gravar coisas, mas quando editas tens uma esperança de que o teu trabalho seja bem aceite, ou então não editavas. Mas acho sinceramente que vai correr tudo bem e que as canções do Turbo Lento vão ser bem recebidas. Depois das reacções que tenho visto, depois do disco ter sido posto em streaming no Spotify…
HM: Sim, esse é que foi o momento, a altura em pusemos aquilo no Spotify. Pensámos todos: “deixa lá ver agora, agora é que é o teste!”. E até agora só vimos reacções positivas. Se calhar também há muita gente com reacções negativas, mas essas pessoas, pelo menos, ainda não se deram ao trabalho de escrever.
Depois dos concertos de apresentação do disco (5 de Outubro no Hard Club, no Porto, e 12 de Outubro na Sala Tejo da MEO Arena, em Lisboa), o que é que se segue para os Linda Martini?
HM: Mais concertos. Estamos a fechar uma tour de auditórios e cineteatros, que arrancará ainda este ano, em Novembro, e por isso não faltará muito para anunciarmos tudo em bloco, quando estiverem as datas todas acertadas.
CG: Mais concertos, sim, e depois seguem-se músicas novas. Apesar de não sabermos o que vai acontecer, vamos fazer um esforço para gravarmos alguma coisa mais cedo. A nossa média, entre edições de LP’s ou EP’s, era de dois anos, e desta vez, por uma série de razões, demorámos um pouco mais, mas agora queremos ver se vamos mais a fundo nos ensaios para conseguirmos ter alguma coisa mais rápido.
Fotos: Dunya Rodrigues
*Este artigo foi escrito, por opção do autor, segundo as normas do Acordo Ortográfico de 1945