O Espalha-Factos terminou. Sabe mais aqui.
my bloody valentine

m b v

Ícones da música alternativa e independente, os My Bloody Valentine são vistos por muitos como autênticos paladinos do experimentalismo, algo que se deve ao papel que os seminais Isn’t Anything (1988) e Loveless (1991) desempenharam na génese e evolução do Shoegaze. Depois de um interregno discográfico de 22 anos que envolveu o fim do grupo, rumores de insanidade, algum eremitismo e horas de gravações deitadas para o lixo, o grupo encabeçado por Kevin Shields decidiu-se a lançar, através da internet, o seu terceiro LP. Posto à venda no passado dia 2, o disco tem o título de m b v e é dele que vamos falar hoje.

São raras as ocasiões em que um disco consegue, isoladamente, alterar as nossas concepções acerca da música popular e encapsular em si, de forma perfeita e imaculada, toda uma época e um género musical. Loveless, lançado em 1991, foi claramente um desses casos, devido à maneira, quase imediata, como conseguiu afirmar-se como a obra-prima da revolução estética que foi o Shoegaze. A maneira como os My Bloody Valentine apuraram nesse disco a linguagem do género, conjugando de forma perfeita as finas melodias Pop com camadas de distorção destrutivas e quase impenetráveis, estabeleceu sem dúvida um novo padrão e fez com que gravar qualquer trabalho na área se tornasse praticamente redundante.

Por isso mesmo, não é de admirar que Kevin Shields tenha demorado quase 22 anos a criar o sucessor de Loveless. Afinal de contas, não deve ser tarefa fácil gravar alguma coisa após termos criado uma obra-prima, especialmente com o peso das expectativas dos fãs nas nossas costas. E para dizer a verdade, apesar de saber bem que Shields é um perfeccionista, de cada vez que ouvia falar no terceiro disco dos My Bloody Valentine não podia evitar sentir, no meio da esperança, algum receio de que o legado ficasse manchado. No entanto, logo à primeira audição de m b v percebi que os meus medos eram infundados, pois este é um LP que, não sendo tão bom quanto o seu antecessor, consegue viver por si só sem se inclinar no trabalho anterior.

Uma das primeiras coisas que notei em m b v foi a sua peculiar estrutura. Dividido em três segmentos, cada um com três canções, o terceiro LP dos My Bloody Valentine surge como uma obra dinâmica que tenta dar, do início ao fim, uma sensação de evolução sonora profunda. Começando com um tríptico que pega numa sonoridade algo reminiscente de Loveless e nos transporta directamente para os anos 90, m b v passa, à medida que progride, por territórios mais doces, onde as guitarras são substituídas pelos sintetizadores, até desembocar no trio final, que demonstra uma espantosa mistura dos drones hipnotizantes e da distorção perfurante com novas influências na percussão, vindas do Jungle e do Drum and Bass, resultando numa inovadora e abrasiva combinação de Shoegaze com música industrial.

No que toca à produção, mais uma vez levada a cabo por Kevin Shields, m b v mantém, de certa forma, os traços gerais daquilo que assistimos em Loveless, trazendo-nos espessas, avassaladoras e quase palpáveis camadas de efeitos e distorções. No entanto, existem algumas diferenças em relação à estética do seu antecessor: a já referida (e pontual) utilização de sintetizadores, o aparecimento de drum loops electrónicos nas últimas três canções e um certo “afiar” do som das guitarras aparecem aqui como os traços mais distintos da produção de m b v. Quanto às vozes, mais uma vez Bilinda Butcher e Shields voltam a trazer-nos um registo bem etéreo e enigmático, que se torna indecifrável com o seu “enterro” na mistura.

Porém, apesar de todas as suas qualidades, m b v não consegue ser um disco livre de falhas. O primeiro defeito, e a meu ver o mais flagrante, é sem dúvida o “deficit” de coesão entre as faixas; enquanto Loveless se apresentava como um todo sólido, com transições suaves e fluidas entre canções, m b v acaba por parecer algumas vezes desconexo, com as peças a terem muitas vezes fins abruptos e pouco satisfatórios. Isso, o problema da falta de “clássicos” instantâneos (como Only Shallow, Sometimes ou What You Want de Loveless) e a presença de faixas desfasadas do todo do álbum fazem com que o terceiro LP dos My Bloody Valentine fique algo aquém da perfeição.

Quanto aos destaques individuais do registo, devo destacar pela positiva a lânguida Only Tomorrow, a nebulosa Who Sees You, a cortante In Another Way, a hipnotizante Nothing Is e a estrondosa Wonder 2. Por outro lado, devo apontar a monótona Is This and Yes (que funcionaria bem como interlúdio caso fosse mais curta) e a desinteressante New You (que, pelo facto de ser tão directa, acaba por ser o “ovni” do disco) como as piores peças de m b v, e que, como foi acima referido, falham em integrar-se no conceito do álbum.

Resumindo, com m b v os My Bloody Valentine fizeram algo de verdadeiramente notável: superar todas as expectativas e criar um disco magnífico, que não estraga em nada o legado histórico do grupo. Ao traçar novos caminhos e expandir a palete sonora da banda, este LP consegue, ainda assim, reter uma grande identidade e soar a algo que só poderia ter sido feito pelo quarteto. É certo que não é um álbum perfeito e que irá sempre perder nas comparações com Loveless; porém, a verdade é que m b v é uma excelente obra, cuja qualidade e consistência falam por si, e que só vem relembrar-nos duma certeza insondável: a de que os My Bloody Valentine continuam a ser, 22 anos depois, uma banda aparte de todas as outras.

Nota Final: 8.7/10

*Este artigo foi escrito, por opção do autor, segundo as normas do Acordo Ortográfico de 1945